Era uma vez, uma menina que gritava a meio mundo que estava sozinha. Acontecia esse meio mundo compadecer-se da menina e dizia-lhe que não, não estava sozinha. Davam-lhe festinhas, broa, vinho e até lhe cantavam cantigas e histórias; ficavam com ela toda a noite até ela parar de chorar, mas quando a menina se fartava, mandava-os embora e cuspia-lhes na sopa, se fosse preciso; gozava-lhes as roupas e as caras feias.
A menina dormia, então, um sono curto de uma falsa paz e quando acordava voltava a gritar por esse meio mundo. Suspiravam, soltavam impropérios entredentes e tiravam à sorte para ver quem lá ia tomar conta dela. Ora, o meio mundo começou a brigar entre si porque ninguém queria ter nada a ver com a menina, mas ninguém a queria deixar sozinha. Chegavam a discutir feio e a lutar. A guerra começou e o mundo passou a estar divido em duas metades: uma que queria fazer companhia à menina e a outra que pedia ao diabo para a carregar.
Lá no alto do pedestal, a menina ria para si e cantarolava. Brincava com as suas máscaras: era uma menina que estava sozinha e cuspia em sopas; era alguém que vivia numa metade do mundo e outro alguém que vivia na outra metade do mundo; e quando alguém saltava entre metades, prendia os pés e os braços das pessoas com corda.
No seu pedestal, pôs a máscara de menina e voltou a gritar pelo mundo, mas a guerra abafava os seus gritos. Então riu-se e abriu os braços.
De cada dedo, esticavam-se fios quase invisíveis que corriam terra e mar e ar até às pessoas que lutavam entre si. E dançava!, e quando dançava, as pessoas brigavam mais por ela.
Por fim, não restou mais nada. O mundo estava virado do avesso e esgotado de tudo, apenas restava uma só pessoa: a menina. Nessa noite, dormiu um sono curto de falsa paz e quando acordou, gritou que estava sozinha, mas agora ninguém respondeu. Gritou de novo, uma, duas, três vezes. E bem alto! Nada, apenas um vento que não cantava cantigas, que não lhe dava broa, vinho nem festinhas. Um vento não sabia ser boa companhia. A menina viu-se sozinha, mas desta vez a sério.
Aos seus pés estavam os corpos das pessoas que flutuavam num oceano vermelho sanguinolento e quando chorou, o oceano provou o sal de lágrimas pela primeira vez. Chorou dias e noites até se secar.
Quando se cansou, atirou tudo para o oceano: máscaras e cuspidelas e gritos. Recolheu o fio das suas marionetas mortas, enrolou-o ao pescoço frágil e prendeu ao pedestal. Contou até um, dois, três e saltou.
E foi assim que o mundo ficou: em silêncio e num oceano de pessoas divididas, com uma marionetista enforcada nos seus planos.
Quando alguém chegou, anos e anos mais tarde, encontrou a sua última mensagem gravada na pedra: A pior companhia que jamais tive era eu.