Só assim o poderia esquecer. Só assim é que ele poderia partir. O seu fantasma ainda perdurava na cozinha; vestia um avental ridículo com um coelho e dançava enquanto cozinhava; cantava mal, mas a comida era deliciosa. Ele adorava ervilhas e cozinhava-as com gusto. É um alimento versátil, ia bem com carne, peixe, outros legumes, na sopa ou sozinhas. As ervilhas não eram exigentes. Desde que não cozessem demasiado, tínhamos um prato delicioso.
E a Sofia adorava as suas ervilhas, mas agora que ele não estava, eram ervas daninhas de memórias e a única maneira de as expurgar era através do ciclo completo da digestão. Então, comeu. Uma após outra com esforço. As ervilhas cederam sob os dentes, explodindo em lembranças que desceram garganta abaixo entre soluços lacrimosos.
Não restou nada. Dele e das ervilhas. O molho era um Rorschach e se o tê-lo-ia visto há minutos, agora só via o molho. A deglutição tinha-a mudado, sentia-se satisfeita e a entrar na digestão.
Levantou-se e foi meter a Whole Lotta Love dos Zeppelin a tocar. E foi levantar a mesa. Tinha-se transformado e estava agora noutro plano.
Abriu a água no quente; encheu esfregão de detergente e pôs-se a lavar a louça com ritmo. Arrotou como se algo tentasse escapar. Desculpou-se com um perdão e riu-se.
Eram duas ervilhas numa vagem. Eram.
Escrito por André Soares Pereira, um pseudo autor de ficção, entre outras coisas.
Sigam-no por aqui, mas não na rua, por favor.