Pedro,
lembra-te de que não podes fugir deles, por mais que te escondas
acabarão por te apanhar e terás de prestar contas.
Tem cuidado,
e faz o que te pedirem.
A
cacofonia dos travões arrancou-me daquela memória para a realidade.
O táxi tinha parado e o condutor olhava-me com apressado. Paguei
sem cerimónias e abandonei diligentemente o veículo. Estava algures
em Lisboa – algures fora que o pedi.
Olhei em volta à procura
de referências e reparei num pequeno bar na base de um prédio
tradicionalmente lisboeta: velho. Sem outro sítio para ir, avancei a
passos tímidos para a porta do bar, que destoava do cenário
histórico do edifício.
Uma porta de vidro encostada deixava ver
que o bar estava quase vazio, salvo alguns clientes. Ouvia-se música;
não a conhecia, mas era-me triste e convidativa. Abri a porta
lentamente e entrei para a música.
Well can I ask you about today
How close am I to losing you
How close am I to losing
“Boa tarde, bem-vindo ao Sétimo.”
Recebeu-me uma empregada sorridente. Vestia uma farda de empregada de café americano dos anos cinquenta.
“Boa tarde” ofereci. “Desculpe, mas como se chama esta música?”
“Esta música, ora…” Olhou para algo escondido pelo balcão. “About Today, dos The National.” Sorriu. “Vai tomar alguma coisa ou veio apenas pela música?”
“Ambos.” E sem dar por isso, sentei-me ao balcão. “Um copo de leite, por favor. E importa-se que fume?”
“Um copo de leite e um cigarro. Esteja à vontade, mas digo-lhe já que é uma combinação estranha…”
“Dias estranhos.”
Um cigarro e um copo de leite frio seriam a coisa mais normal a acontecer hoje. Puxei um e levei-o aos lábios.
“Não costumo fumar” admiti, “mas hoje está a dar-me uma vontade daquelas.”
“Compreendo. E aqui está o seu leite.” Deixou uma base gasta no balcão e descansou o copo alto sem cerimónias.
Puxei de um cigarro do maço e levei-o aos lábios. Acendi-o e puxei o calor para dentro. Troquei-o pelo leite e dei um gole no leite frio.
Soltei um suspiro fresco de satisfação. Passei a alternar entre o leite e o cigarro até terminar num monte de cinzas. Acendi outro.
Observei o resto do bar: à esquerda estava um homem de casaco de Inverno a comer um gelado com uma criança. Ambos riam baixinho; à direita, na ponta do balcão, um velho lia o jornal. O avançar de páginas era acompanhado com um ugh enojado. Não era preciso ser-se adivinho para saber que não estava a gostar das notícias. Ugh. Virava para a próxima.
Sacudi o fumo com a mão e bebi um pouco de leite.
A empregada ocupou-se a secar a louça com um pano, mas sempre com atenção às almas no bar. Espreitei para trás, na direcção de outro folhear, e reparei num vulto enorme a ler. Voltei-me para a frente e o copo de leite estava cheio, espero que não cobrem mais…
Bebi e fumei. Comecei a falar para a rapariga dos anos cinquenta.
“Conhece a expressão que diz que a vida é um livro já escrito? Cada dia é uma página.
“Já ouvi falar” respondeu. “Num filme ou isso.” Limpava agora o balcão.
“Hoje acordei com a estranha sensação que isso não acontece comigo, sabe? Sinto que o meu livro está em branco. Cada dia é uma página a ser escrita por várias mãos. Mas hoje, hoje, é o primeiro dia em que me sinto eu. Eu.” Diminuiu o volume da música e continuou nas limpezas.
“O calor deste cigarro. O frio deste leite. O doce. A nicotina. Este choque tão real. E aquela música que me chamou? Triste, mas que me encheu por dentro. Senti algo. Eu. E sei que quando sair por aquela porta. Se sair. Irei esquecer tudo isto.”
A mão tremia-me com o cigarro. Estava tão pesado que o deixei na parede do cinzeiro. Tentei beber mais um gole, mas o frio do leite congelou-me a boca. Mas a dor era minha.
“É bom ter fé em alguma coisa” continuei. “Ter a vida planeada desde o nascimento. Queria… desejava saber que não irei morrer naquela curva. É um luxo que não é para todos.”
Sacudi a cabeça e ri-me.
“I know not what tomorrow may bring. Disse o Pessoa e concordo.”
Desci do banco com a sensação de que tinha feito figuras e deixei uns vinte euros ao balcão. Bastante a mais, mas para o Diabo.
“Posso usar a casa de banho?”
A empregada apontou-ma para o fundo do bar. Arrastei-me até lá com a nuvem de alguém atrás. A música aumentou e eu entrei na dos homens.
Lá dentro, olhei para o espaço asseado e avancei para o urinol mais afastado da porta.
Abri o botão das calças e puxei-o para fora para mijar.
Ainda nem tinha acabado quando senti uma presença ao lado. Voltei-me e encontrei um negro possante e vestido à proxeneta dos anos 70, sobretudo roxo e um chapéu de abas enorme com uma pena no topo.
Era o vulto a ler o jornal. E tinha-o na mão. Apontado na minha direcção, mas que na verdade escondia outra coisa.
“Boa tarde, Pedro. Não pude deixar de ouvir a conversa. Interessante, até.”
Continuei a urinar, sabendo o desfecho daquele encontro. Só gostava de ter outro cigarro.
“Tenho uma proposta para lhe fazer.”
“Na casa de banho? Suspeito.” Sacudi a pila e a graçola. Fui enxaguar as mãos. “Venda daí essa proposta, então.”
O homem baixou o jornal e escondeu algo no bolso. A voz dela ecoou-me dentro da cabeça: ia fazer o que pedirem.
Eles finalmente chegaram. Ele. O dia. O destino.