Um Ano

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Nunca devemos conhecer os nossos ídolos. Ou os fãs.

Nunca devemos conhecer os nossos ídolos. Ou os fãs.
Estava eu sentado numa pastelaria da capital quando uma miúda se sentou à minha frente. Bonitinha, com um penteado que me fazia lembrar a Hepburn, em Breakfast at Tiffany’s. E eu a comer uma tosta mista com um galão.

A Audrey, vamos chamá-la assim, sentou-se sem permissão e atirou a mala para o chão. Tirou um guardanapo do suporte e passou-o na testa. Olhou-me rígida e começou a ralhar comigo:
“Típico. Começas algo e não as acabas.”
Mantive-me calado, estúpido, mas devo ter feito algum som porque ela estremeceu. Tentei reconhecê-la de algum instante da minha vida; da minha editora ou… namoradas?, mas nada. Esta rapariga ou tinha-se enganado na pessoa ou eu tinha feito merda. Mas o quê?
“Desculpe?” Consegui perguntar.
A Audrey esmagou o pequeno guardanapo e largou-o no cinzeiro.
“O que estás a beber?”
“Um galão…” Apontei para o copo mesmo à frente dela.
“Sim. Eu vejo que é um galão. O que andas a beber?”
Mostrei-me ainda mais confuso. A sobrancelha soerguida denunciou-me.
A rapariga levantou a mão e pediu um Martini para si quando a empregada apareceu por trás. Ela sabia começar a manhã e eu a comer tarde porque tive análises antes.
“Desculpe, mas não estou a entender nada” confessei um pouco incomodado. “Não será engano?”
“A Audrey mostrou a sua expressão de incomodada e sorriu-me. Seria uma fã maluca que me ia matar como ao Lennon? Tinha de sair dali, mas antes tinha de pagar…
“Vi-te no ano passado quando lançaste o Apeadeiro. Disseste que ias focar-te no blogue e interagir mais com a comunidade.”
Agitou o Martini e a situação começava a materializar-se no líquido.
“Não escreveste nada de nada. Nem no blogue nem em livro.”
Engoli em seco. Merda. Bebi do galão naquela pausa.
“Deves aos teus fãs um ano de conteúdo. Sabes disso?”

Merda. Era verdade. No lançamento do meu primeiro romance, tinha respondido a um fã (uma fã?) que ia manter o blogue e continuar a falar com eles. Não fiz nada disso! E, para ser honesto, não escrevi pevas. Estudei a nossa Audrey e tentei colocá-la naquela sessão. Era quase tudo gente jovem e não havia uma Audrey, mas foi há um ano!
É possível que ela tenha reparado no reconhecimento dos meus olhos porque sorriu-me. Brindou-me com o seu copo e deu um gole.
“Sim, sou eu. Fui eu que perguntei sobre o blogue, mas na altura vestia-me de maneira diferente. Penteava-me de maneira diferente. Andava de maneira diferente. Enfim. Cresci. E tu? Que tens feito?”
“Coisas. Concursos, projectos, desafios. Perdi-me… é verdade.”
Era mesmo. Num espaço de doze meses tinha surgido tanto nada que a minha mente fora incapaz de se concentrar no próximo livro: no livro dos gatos.
“Preguiça” rematou a Audrey.
“Culpado…”
“Um ano.” Deixou o copo na mesa, em frente ao meu. “As pessoas mudam, mas olho para ti e continuas igual.”
“E tu não.” Contemplei-a de cima a baixo.

A primeira impressão de há momentos tinha sumido e agora via-a a como um fantasma do passado.

“O que aconteceu neste ano?” perguntei-lhe.
“Ora: apaixonei-me e deixei de estar apaixonada. Comprei roupa nova e deitei fora a velha. Nada por aí além. Mas tu. Se não escreveste, o que andaste a fazer?” Recuperou o copo e bebericou enquanto esperava a minha resposta.
Olhei para o que trazia vestido e devolvi o mesmo comentário: “a roupa é a mesma. Os amores não aconteceram. Sabes? Talvez seja disso.”
“Estagnaste emocionalmente, não foi?”
“Capaz.”
“Mais alguma coisa?” Inclinou-se para mim.
Nope, nada”

Nada convencida, acabou com o Martini e aterrou o copo na mesa. Voltou a tirar um papel para se limpar.
“Porque não usas isto? Um encontro inusitado com uma miúda que te abordou aleatoriamente. Tu a comer um pequeno-almoço normal e aborrecido e ela com uma bebida requintada, a fazer perguntas que tocam em feridas. Tem assim um ar de surreal, não tem?”
Concordei.
Saltou da mesa, deixou uma nota de cinco euros e veio até mim. Baixou-se ao nível da minha cara e aproximou-se. Recuei por instinto, mas ela prendeu-me a cabeça. Assentou um beijo na testa e sorriu. Não morri.
Saiu do café logo após a cena. Bebi o resto do galão e acabei com o pão. As poucas pessoas lá dentro ainda ficaram a olhar, mas retomaram as suas existências.

Que terramoto. Às vezes é preciso um abanão da vida para voltarmos a funcionar. E ela tinha razão: desperdicei um ano. Tinha duplamente razão: a ideia dela nem era má de todo. E o travo a álcool que deixou para trás assombrou-me as memórias durante meses enquanto escrevia o próximo romance. Não era o livro dos gatos, mas sobre uma rapariga que andava por aí, a visitar artistas na penúria. Nessa história havia um escritor perdido, com um emprego das nove às seis, e que já não sabia escrever.
Mais composto e com um sentimento de missão bem-sucedida, caminhei rua fora até à próxima estação de Metro. Voei pelos degraus e desapareci na hora de ponta.

Passou outro ano quando o livro viu a luz do dia.
Voltei à mesma livraria e procurei-a nas cabeças dos presentes. Só no meio da sessão é que apareceu com o seu ar de Audrey. Sorriu. Sorri. Acenou-me.
Quando terminámos, pensei em convidá-la a sair, mas não a voltei a encontrar. Por momentos, entre passou-bens e abraços, duvidei da minha cabeça. Talvez tenha sonhado demasiado com este livro.


Escrito por André Soares Pereira, um pseudo autor de ficção, entre outras coisas.
Sigam-no por aqui, mas não na rua, por favor.