Os Homens do Tempo

photo of water drops on glass

É assim a vida, desejamos o sol, mas calha-nos a chuva.

A meteorologia está em todo o lado na nossa vida. Influencia a saúde, o humor e os temas de conversa – ou a falta deles.
Molda culturas e dá uma mãozinha na economia.


Há quem viva dela, da meteorologia. Os homens do tempo apareciam na televisão, logo a seguir ao telejornal. Ou na rádio. Alguns escreviam para os jornais, sites ou contribuíam para aplicações úteis. Os antigos sabiam de danças, de encantamentos ou de patranhas para invocarem a chuva. Sacrificavam a deuses, rezavam a santos ou desenvolveram ciências. Criaram lendas e escreveram almanaques.
Os homens do tempo estavam por todo o lado. Aquele escritório no andar abaixo? Talvez.

A nossa personagem era um estagiário do tempo. E tinha uma cara honesta. O formador fazia questão de lhe dizer isso, mas a primeira vez fora na resposta à candidatura.
E o que era uma cara honesta? A definição poderá variar de pessoa para pessoa, mas neste caso eram os olhos do estagiário e como recebiam as outras pessoas. Eram poças de água límpida, onde se podiam saltar num dia de Outono e sentir aquela pica de criança. E quando sorria, apenas revelava o número certo de dentes para não intimidar, as mãos gesticulavam q.b., mas não chegavam a tocar.
Também se considerava boa pessoa no sentido em que somos todos boas pessoas por não arrancarmos uvas no supermercado ou esfregarmos o dedo no sal do bacalhau. E porque iam lá outros com as mãos e não sabíamos onde tinham andado. Bondade com um pouco de autopreservação.

Quando acabava o trabalho, o estagiário apanhava o Metro para casa e não era raro ouvir alguém, ou vários alguéns, a comentar o tempo ou a resmungar porque estava mau ou muito bom, nem carne nem peixe.
Num desses dias, vinha uma velhota a bufar durante estações. Estalava a língua, soprava. Ela era uma tempestade geriátrica, a trovoar comentários de “Ninguém me paga se ficar doente!”
Havia um fio triste naquela velhota. Ela esperava que alguém a validasse e o puxasse para começar a desabafar, mas a carruagem não lhe estava a prestar atenção. Apertou a mala contra o peito e não se desviou do vidro que lhe trazia o reflexo nas passagens escuras.

Outras vozes diziam outras coisas: alguém tinha mandado uma tanga no trabalho para ir à praia, mas lixou-se quando saiu de casa, com a toalha ao ombro, e apanhou uma molha – Ups, riu o estagiário. O amigo também se ria, enfiado num fato de escritório. Segurava um chapéu que tinha comprado na estação. A sua cara era-lhe familiar como todas as que entravam e saíam dos transportes.
Não conseguia acompanhar o resto das conversas cruzadas. Chegavam até ele, mas soavam a estática de um canal de televisão fechado; a um aguaceiro às poucas da manhã que nos fazia aninhar até voltar ao sono.
Mas via as suas caras: uma indiana de sacões cheios de doces e de bolachas. Não falava, mas ouvia tudo séria; um casal adolescente abraçava-se a um canto, alheios ao mal olhado que lançavam por terem a música alta. Perdidos em si, partilhavam auscultadores e bom gosto musical com Garbage a tocar. Nem estava muito alto, mas se as pessoas não se pudessem ouvir, estavam a ser incomodadas. Os putos estavam felizes e a Shirley também estava feliz porque estava a chover.

A carruagem chegou à estação. O estagiário saiu e passou pela janela onde estava a velha. Sorriu-lhe e foi para as escadas.
Também o sorriso dele acusava um fio de tristeza, um que se fosse puxado desfazia-se em perdões. Era quase culpa dele; da sua cara honesta; do estágio e dos homens do tempo. Amanhã seria outro dia no escritório.
Mas ele gostava – não, adorava o seu trabalho. Dava-lhe doses equilibradas de monotonia de escritório e de excitação do exterior. As pessoas comiam-lhe das mãos e vendia tanto guarda-chuva!, mas… de onde vinha tanto chapéu?
Bem, havia uma teoria, que era mais piada, que havia um negócio qualquer com as lojas dos chineses. Compravam lá e vendiam um nadita acima do que davam por eles. Depois, havia os chapéus que desapareciam e voltavam à circulação. Chapéus sempre perdidos, mas nunca encontrados – os dobrados ou no lixo não contam.
Chineses, homens do tempo e pequenos seres que operavam por entre as gotas da chuva. Empreendedorismo local.

O formador tinha-lhes dito algo no primeiro dia que nunca se iriam esquecer: tudo o que aprenderam na faculdade é para esquecer.
Construção irónica, mas a verdade é que o trabalho dos estagiários não tinha nada a ver com os cursos deles.
Ele tinha vindo de Letras e ela de Informática. A razão pela qual tinham sido aceites era a mesma: as suas caras honestas.
Ao menos eram dois, sempre tinham companhia para chorar o dinheiro das propinas.

Tanto o estagiário como a estagiária pertenciam àquela estirpe estranha de pessoas que incluía fotos profissionais nos CV – fundo branco, ângulo ligeiramente torto e a sorrir apenas o suficiente para parecer profissional e não desesperado por um trabalho.
O formador respondeu aos mails dos dois e recebeu-os uma semana depois. Era um homem baixo, anafado, com tendência para suar muito e que combinava camisas lisas dentro de chinos. O que, dada a sua condição, dava para notar as manchas de suor nos sovacos.
Era um tipo engraçado que combinava o humor com gravatas temáticas. O escritório sabia logo como estava consoante os motivos estampados: sóis sorridentes, arco-íris, nuvens a lacrimejar, e assim.
Também tinha uma cara honesta, mesmo com o cabelo a fugir-lhe da cabeça. Olhavam para ele e acreditavam no que dizia, daí que o discurso para esquecerem o que aprenderam nas aulas tivesse entranhado.
Porque era verdade, não havia curso que os preparasse para aquele trabalho.

A colega estagiária era simpática.
Era bem mais alta do que ele e ouvia várias vezes a piada de como estava o tempo aí em cima. Ela comentou a ironia com o colega, mas nenhum homem do tempo foi à piada básica. Tinha olhos verdes, nariz longo e uns lábios grossos de riso fácil – tudo enquadrado por um cabelão roxo berrante.
Bastante educada, prestável e achava piada às mais pequenas coisas.
O trabalho dos estagiários do tempo era passado ao computador, e passado numa sala velha. Os cantos do tecto estavam negros com humidade e a parede tinha mais partes escamadas que tinta. Para grandes males, remédios artísticos, pois haviam pendurado posters para disfarçar.
E chovia em todas as ilustrações.

A estagiária estava a olhar para um que abria para um rua estreita.
Era de noite e chovia a potes. Viam duas portas: uma tinha uma bicicleta encostada à parede e a outra tinha caixas de garrafas empilhadas. Havia algo escrito por cima, num néon vermelho que iluminava a ruela.

“Ame, apontou o formador uma vez. “Quer dizer «chuva».”
Havia uma história, uma história de há vinte anos de quando viajou ao Japão: estava perdido em Tóquio e encontrou abrigo num bar chamado Chuva, quando chovia torrencialmente. O anfitrião serviu-lhe uma massa quente e uma bebida ainda mais quente e disse-lhe que tinha vindo visitar o país na pior altura porque estavam na época das chuvas.
O homem do tempo que já o era não ficou desanimado e fotografou o país durante um mês, assim mesmo.
Decorou o escritório com fotos de um Japão chuvoso e cada uma tinha outra história. Aquela era a do bar que já teve vários nomes e de alguém que o acolheu. Reza a lenda que a parede do Chuva tinha uma foto da rua do escritório lisboeta.
E estava a chover.

A sala dos estagiários não era grande nem tinham muita privacidade. Estavam virados um para o outro, com as mesas encostadas a meio da divisão. Trabalhavam em computadores a amarelar de velhos e que só tinham um editor de texto, o browser e um programa do tempo que lhes dava todas as previsões. Esse programa tinha um questionário, do género de exames de código. Quando não estavam a trabalhar, a visitar o Japão, quem falhasse mais perguntas bebia uma caneca (de água).

Ali a meio do Outono, o estagiário teve um encontro imediato de primeiro grau na casa de banho.
Tinha entrado, sentado e estava a passar o tempo no telemóvel enquanto não saía nada, quando ouviu o assobio do patrão. Ele era tão boa pessoa, mas não conseguia manter uma melodia nem que a sua vida dependesse disso.
O estagiário saltou da sanita. Ainda teve cabeça para lavar as mãos e furou porta fora para esbarrar no homem. Parou de torturar a música, “Temos de falar!”
“Diga” respondeu o estagiário. Seguiu-se um silêncio estranho patrão e empregado.
O estagiário apercebeu-se de que estava a mais e deslizou para um lado. O formador que não era ágil, desviou-se para o mesmo lado e os dois dançaram ali à entrada da casa de banho.
Lá se separaram, o formador entrou. O estagiário acelerou embaraçado até à sala.

A colega estava a ler blogues quando chegou à sala. O rapaz encostou-se à porta e contou-lhe o que tinha acontecido. E ela tentou, mas não conseguiu abafar a primeira gargalhada. Ele fez-lhe uma cara feia e ela cobriu-se com as mãos, mas os olhos continuavam a rir e dois veios de lágrimas correram pelos cantos.
“E tu ali à espera!” Apertava a barriga. O fio dos auscultadores enrolados nas pernas. “Estavas à espera de alguma proposta?”
“Encravei, tá?” Ele já se ria também. “E se fosses tu?”
“Se fosse eu?” Fingiu estar chocada com a pergunta e respondeu entre goles de ar, “não estou assim tão desesperada para ficar. Mas tu estás!”
“Ei, não estou, mas vinte euros são vinte euros!”

Nisto, o formador entrou abafado pelos risos.
Entrou com uma expressão de alívio e rasgou o sorriso quando os encontrou bem dispostos.
Os estagiários calaram-se para o ver ir até à janela e a virar a pega para um lado, para o outro sem conseguir abrir a janela. Puxou, empurrou e nada. Perguntou se havia algum truque, mas só encolheram os ombros. Abriam a janela todos os dias e estava a ser a primeira vez que a viam teimosa, como se ela soubesse do calor na sala.
Os abdominais da estagiária ainda doíam quando o formador desistiu e descansou a palma no vidro – estudou a sala, um de cada vez.
Ambos sabiam que vinha um discurso. Tão certo como o amanhã chegar depois do hoje.
E começou: “vai começar a melhor parte do estágio!”
Os olhos e a atenção estavam postos no formador.
“Está a ficar mais frio, quase aí a chover e as pessoas vão precisar disto…”
A outra mão apareceu das costas a segurar um guarda-chuva.
Rodopiou-o na palma aberta para os distrair do verdadeiro truque de magia: linhas estreitas de água escorriam pelo vidro.

Lá fora, as nuvens tinham a cor de filmes antigos e caminhavam para longe do escritório, em direcção à alta de Lisboa.
A melhor altura do ano estava a começar. E a chuva caía contra a janela, batendo levemente com a ponta dos dedos para entrar.
Ao menos se a janela abrisse.
O formador bateu com a ponta do chapéu no vidro e aproximou-se: “amanhã vamos passear”.
“Aonde?” perguntou a rapariga, forçando-se da janela.
“Perto. Vamos a Entrecampos vender chapéus. Amanhã subam e saímos os três.”
Disse aquilo com tal normalidade que não deu pelo quebrar do encantamento.
Os dois estagiários viraram as cadeiras para o formador com expressões diluídas que não se decidiam entre a confusão ou o gozo, mas não era o primeiro rodeio do homem.
Amparou os comos, os porquês e algum sarcasmo. Adorava aquelas reacções tal como tinha adorado a dos outros que tinham ficado como homens do tempo.
Para eles era uma lição nova, para ele era uma quarta-feira.

Alisou a gravata com a mão livre e reforçou o sorriso para uma lição que não aprenderam na faculdade.
“Há mais para além do que fazemos aqui: escrever sobre o tempo, ir para um ecrã verde dizer se está frio ou calor. Isto e aquilo…” e pesou cada palavra da segunda parte. “mas há mais.”
Inclinou-se e quase que sussurrou:
“Às vezes mentimos.” Recuou com um sorriso traquina.
“Como assim?” perguntou o rapaz, mas podia ser ela.
Voltou à sua cara honesta, “às vezes quando chove… dizemos que não vai chover. E quando chove… vamos vender chapéus de chuva para o Metro.”
A atenção dos estagiários voltou-se para o chapéu. “Mas nunca no dia das mentiras!”

Os homens do tempo eram bons homens do tempo porque tinham uma cara honesta. Iam, apareciam, diziam coisas às pessoas e elas acreditavam. O formador não era excepção.
Ele tinha uma daquelas caras de porta aberta, deixava todos à vontade e quando falava, ouviam. E acreditavam. Às vezes…
“E é legal?” perguntou o rapaz, com uma voz que parecia longe.
De várias, apenas conseguiu dar voz àquela questão. Parecia estar a aceitar a ideia, mas ainda tinha alguns pregos por martelar.
O formador sorriu-lhes.
“Ora, claro que é!” Tentou sentar-se numa secretária, falhando toscamente. Viam-se manchas escuras a brotar das dobras dos braços e apagou por uns segundos, mas regressou logo.
“Já arrendaram?”
Ela disse que sim. Ele disse que não.
“Um dia vão ver de uma casa. É muito linda e espaçosa e barata, mas acham que o agente vai falar dos problemas de humidade ou que mataram lá uma família?”
Ainda esperou por uma resposta, mas àquela pergunta só teve o silêncio.
“Pois. Diz só que a casa foi renovada e está como nova. Vamos assinar?” Falsificou um sorriso com todos os dentes. Inspirou fundo e expirou uma metáfora com sucesso. “Um mês até as manchas voltarem a aparecer ou ouvirem alguém a chorar à noite.”
Quando o diabo tinha bons argumentos, não havia muito a fazer.
Não o estavam a chamar de diabo ou perto disso, mas odiavam que ele tivesse aquele bocadinho de razão.
Nos tempos que se seguiram, viram o bem, o mal e uma vasta área cinzenta onde proliferavam mecânicos que achavam outros problemitas, médicos a engonhar listas de espera, taxistas que davam voltas maiores e, depois, os homens do tempo.
O que faziam não era ilegal, mas roçava ali o imoral.

O formador deixou-os com as suas nuvens e desapareceu a tentar assobiar.
A estagiária empurrou a cadeira para trás e foi rodar a pega sem resistência.
O fresco expulsou a tensão da sala e os estagiários ficaram de conversar.
Havia meia hora de revelações para discutir e, ao mesmo tempo, nada.
O amanhã fazia parte do estágio. Se não quisessem ir, não haveria problema – só que havia: não podiam continuar.
Assim, iam aprendendo mais sobre os homens do tempo e tudo o que aprenderam nas aulas estava mesmo a valer um chavo. Até porque nenhum teve cadeiras de feirante ou fez biscates em lojas.
Em breve, a realidade regressou à sala e tudo o que ouviam agora eram as ventoinhas dos computadores. O protector de ecrã dele tinha um bebé de fralda a dançar ou a ter um ataque e ela sacudiu-lhe o rato.
O bebé deixou de existir e ela voltou aos blogues.
Ele voltou à casa de banho.

O amanhã chegou com ameaça de chuva.
O céu tinha a cor do algodão sujo e o Sol só tinha segundos para espiar as três pessoas a sair de um prédio lisboeta, a apressarem o passo até Entrecampos.
Não era longe, mas as nuvens estavam a postos; o vento achava que também tinha algo a dizer e deu ares de si, sacudindo os impermeáveis e os sacos de ginásio contra as pernas. Caminhavam como espectros, cobertos até às canelas, as solas das botas pesadas contra o passeio e a marchar em silêncio.
Quem os visse sem contexto, julgava que caminhavam com um plano para assaltarem um banco.

O formador vinha a massacrar algo que deixaram de reconhecer. A cantar, a miar ou a invocar a chuva, e se o estivesse, fixe, tinha conseguido: começou mesmo a cair.
As primeiras gotas tombaram contra os impermeáveis e deslizaram para o passeio. A chuva carregou mais e foi a varrer por Entrecampos. Depois, Lisboa.
As poucas pessoas por ali lançaram-se para as paragens ou para o Metro, nenhuma tinha guarda-chuva.
O formador parou-os à entrada e apontou para a boca da estação. Atrás ouviam-se os comboios e a voz incorpórea da senhora.
“Escolham uma passagem e peçam cinco euros por cada. Nunca a mais, mas não os ofereçam.” Acenaram e desceram.
Ele ficou em cima, a ver a rua, os carros e as ondas que atiravam e quebravam no passeio.

O rapaz montou a “loja” na ponta oposta de onde entraram.
Ficou ao fundo da escadas, onde podia apanhar as pessoas que entravam e saíam de Entrecampos.
Dali conseguia ver os últimos degraus e a cascata que os tornava perigosos. Um segurança iria deixar aqueles avisos amarelos de piso escorregadio, mas os apressados iriam ignorar.
Nos intervalos da confusão, ouvia a chuva, mas podia ser só na sua cabeça. A chuva soava a um aplauso interminável. E ele era o palhaço.

Deixou o saco num canto e tirou cinco guarda-chuvas. Pendurou três no pulso e ficou com dois para despachar.
Com aquela borrasca, não demorou muito até fazer a primeira venda. Depois, a segunda e a terceira. Havia necessidade, havia muita procura. Ele tinha a oferta.
Àquele dia, seguiram-se outros dias. Semanas.

Quando não estava a vender, estava a observar a estação.
Em poucos dias já reconhecia caras que iam e vinham nos transportes, os seguranças, as empregadas de limpeza e os outros lojistas.
Era uma rotina confortável ver a estação a abrir, como uma orquestra a começar à vez, onde ele era o público: primeiro os cafés (para acordar as pessoas), as tabacarias (para informar as pessoas) e as lojas de bricabraques e roupas (para limpar as pessoas).
Além desses, também havia outros vendedores ambulantes com penduricalhos para os passes, cães que davam mortais e doces dúbios.
E a moça dos cachorros-quentes. A moça dos cachorros-quentes…

O carrinho já o tinha visto, mas a miúda era nova por ali. Ele tinha muito tempo para queimar, portanto estudou-a.
A moça dos cachorros tinha uns olhos castanhos e aborrecidos, um pequeno nariz com piercing e uma boca que só sorria para os clientes. Ela não prestava atenção a nada. O mundo podia acabar ali que ela não saía do telemóvel. Se não estivesse a trabalhar, estava tic tic tic até ao infinito. Ainda assim, havia algo nela…
Os homens do tempo valiam-se pelas suas caras honestas e travavam amizade facilmente. Sem muito esforço, a brasileira do café já o enchia sem cobrar mais; o segurança já o deixava usar a casa de banho da estação, mas ninguém sabia nada da nova empregada dos CACHORROS DA NAÇÃO.

Sempre que ia vender, esperava que ela viesse destapar o carrinho. O CACHORROS DA NAÇÃO em Wordart, a rodear um galo de Barcelos, tinha tanto de cómico como de patriota, se fossemos conhecidos pelas salsichas do super, mas para o rapaz, nada interessava: nem o pão seco, as salsichas requentadas ou as bebidas sem gás.
Apenas a ilusão de meter conversa e convidá-la para um passeio pelos corredores. Iriam falar dos seus empregos e do que faziam fora dali. Iriam ver o alfa a partir e imaginar-se-iam lá dentro na primeira classe. Iriam conversar sobre tudo e sobre nada, mas…
Não se chamavam Jesse ou Celine e a vida não era um filme indie. A fantasia não passava disso.
Nem um chapéu comprou. Ela era toda negócio e zero prazer.

Mas um dia tinha de falar com ela, oferecer-lhe a mão, apresentar-se com um Olá, sou o coiso e tal. E tu? Fulana? Nome giro.
Quis o destino que esse dia nunca chegasse pois numa bela tarde, quando arrumava os guarda-chuvas, olhou na direcção dos CACHORROS DA NAÇÃO. O que o esperava não era bem o que ele… esperava. A moça dos cachorros estava abraçada a outra miúda e só se separaram depois de um beijo nos lábios.

Congelou parvo.
Ia numa carruagem que tinha travado e acelerado logo a seguir, corpo e mente para cada lado. O mundo estava em fast forward e a cacofonia era o gozo da colega, mas quando caiu em si: era a voz de uma cara conhecida. A velhota da carruagem.
A senhora queria um chapéu e disparava comentários contra o tempo.
As bocas eram elásticos puxados contra as mãos do estagiário. A culpa até que era sua, e se ela soubesse… Mais tarde, iriam acabar na mesma carruagem e não teria por onde fugir.

Quando acabou a venda, o casal estava sentado ao telemóvel.
Afinal ela sorria, mas pelas razões certas. Por um lado estava bem mais aliviado por já não sentir a ansiedade de ir meter conversa, por outro estava um pouco triste.
É assim a vida, desejamos o sol, mas calha-nos a chuva.
Quando contou à colega, ela riu-se durante vários dias úteis. E talvez se tenha rido ao fim de semana.
Com meses de estágio, já tinham a confiança para se picarem e com meses de estágio, também estava quase a deixar de o ser. Mas apenas um iria ficar, segundo o formador.
Eram os dois maravilhosos, excelente material para homens e mulheres do tempo e tinha muita pena, muita pena.

Acabou por ficar a estagiária. A mulher do tempo.
Tudo o que era bom acabava antes de chegar ao fim. Carregava um caldeirão de emoções por não ter ficado – queria ficar, também não queria ficar; queria um ordenado para comer e sair de casa, mas queria liberdade. Porque não sabia bem o que queria, tomaram a decisão por ele. Amigos na mesma.
Despediu-se da ex-colega com um abraço e um até já, depois falamos; da sala e dos posters orientais (havia um ou dois cuja história ainda não tinha sido contada).
O ex-formador acompanhou-o à saída e apertou-lhe a mão. Foi um aperto firme e honesto como as suas palavras.

Vais esquecer tudo o que aprendeste aqui. Foste fantástico e tinhas uma daquelas caras, mas como uma chuva no Verão, ficou apenas o arco-íris. Adeus, rapaz.

O ex-estagiário reparou nas caras da nuvens a chorar na gravata e soube que aquele homem à sua frente estava mesmo triste. Mesmo que não o dissesse, o hábito denunciava-o.
Estava tudo bem, pensou o rapaz, ninguém tinha morrido e era só um trabalho. Mas quando as mãos se afastaram, sentiu-se vazio. Que uma parte de si tinha ficado para trás no escritório, naquela sala entre rondas de trabalho e de galhofa com a colega.
A mentir sobre a chuva e a aceitar dinheiro por isso.
Memórias que agora só pertenciam a outras pessoas. Era uma fantasia muito boa, alguém deveria escrever sobre isso.

A porta fechou-se com um suspiro. Desceu as escadas a pé e viu-se na rua. Olhou a porta do prédio, uma porta velha de metal, pesada para os idosos dali, e para as campainhas sem identificação. Estava um pedaço confuso por não ter encontrado o que procurava.
Tinha quase a certeza de que era ali, mas os homens do tempo não estavam identificados.

“Os homens do tempo” repetiu para si como se quisesse dizer alguma coisa.
Desceu os degraus para o passeio e acelerou para a estação.

Deram calor para a semana, mas parecia que vinha aí chuva e não queria ser apanhado no meio de um dilúvio. Meteu a mão ao bolso e sentiu uma nota: cinco euros, nunca a mais, mas não os ofereçam.
Com retalhos de memórias que iriam desaparecer com as horas de sono, sentiu-se um nada mais confortável: se chovesse, podia comprar um chapéu no metro.