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A Júlia era a mãe do António e chegou tarde a casa depois da reunião de pais. No final, a directora de turma chamou-a para falarem as duas.

A Júlia era a mãe do António e chegou tarde a casa depois da reunião de pais. No final, a directora de turma chamou-a para falarem as duas. A professora era nova, ensinava Inglês e estava preocupada; chamou a mãe do António que se aproximou apreensiva e preparada para ouvir queixas do filho, perturba as aulastem más notas ou anda com más companhias. Mas assim que a professora reparou nas sombras na expressão da mãe, tranquilizou-a de imediato com um sorriso afável. Deixou-lhe a mão no braço enquanto se despedia dos outros pais que saíam e deitavam olhares para as duas mulheres, provavelmente aliviados por não terem sido chamados.

A professora começou com um tom melífluo de professora como se a Júlia fosse uma aluna. Admitiu-lhe que estava preocupada com o António e foi escolhendo as palavras como se fossem pedras seguras para atravessar um ribeiro: não estava a falar. Era um aluno que participava e interessado, mas desde há uns tempos que não falava, sentava-se no fundo da sala e demorava a entregar os exercícios. A directora tinha medo que o António piorasse as notas. E depois as perguntas da praxe, aconteceu alguma coisa em casa, na rua ou na escola que pudesse ter escapado às duas?
Perdida e vazia de palavras para responder à professora; a testa encheu-se de carreiros com dúvidas e recordações de algo que possa ter acontecido, mas não sabia de nada. Ele está bem, acho… pensou para si. Talvez o ex-marido soubesse, explicou à professora. Estavam divorciados, mas não podia ser disso. Os dois eram bons amigos, mantinham uma relação saudável pelo António que tinha duas casas e duas fontes de afecto. Não havia discussões, drama, mas que ia falar com o pai dele.
Despediu-se da professora com a promessa de que iria falar com os dois homens. Trancou o carro amarelo que dava sempre na vistas e marcou o número do antigo companheiro que não demorou a atender. O tom jovial que lhe era familiar arrefeceu assim que falaram da reunião, ele confessou-se igualmente perdido. Ninguém atirou culpas, mas ele perguntou se queria que falasse com o filho. Sim, mas quis ser a primeira. Ela ligaria depois. E conduziu até casa que já se fazia tarde.

Empurrou a porta da rua, fechou-a com a mão embrulhada no molho de chaves para não fazerem barulho e trancou. Acendeu a luz e encontrou a mochila e o casaco do filho no bengaleiro. Fez o mesmo e espreitou para a porta do fundo que dava para o seu quarto e o do António. Dava para ouvir o baque baque do plástico do teclado e a fanfarra do jogo que tinha comprado há dias. É só para a escola, prometera, mas eles não eram parvos e compraram na mesma. E agora já tinha um jogo.

Descalçou-se para cima da passadeira verde e avançou muda. A cada passo, ponderava como abordar o elefante no quarto. As palavras certas para o filho conversar consigo confortável, mas como havia de fazer isso? Sim, está bem, era a mãe dele, podia atirar com a porta e mandar-lhe um berro ou falar-lhe com a voz da directora que ainda se demorava na cabeça da Júlia. Parou. Às tantas, era só uma fase confusa de adolescente, talvez uma paixoneta não correspondida, por favor, que seja isso, suspirou a mãe que não queria que o filho tivesse em maus lençóis.
Poisou a mão na porta e deslizou-a para dentro.
A janela já estava fechada e as cortinas corridas; o quarto estava de negro, tirando o filho iluminado pelo cone de luz do monitor, com uma sombra estendida aos pés da mãe. Não reparou nela, continuou a jogar concentrado, a bater nas teclas e o som do metal contra metal saía das colunas encostadas à parede. Alguma criatura grunhiu, mas a Júlia não a conseguiu ver. Esgueirou-se para a ponta da cama, sem deixar de reparar no filho com a ponta da língua a espreitar dos lábios. Um tique que ela lhe passou. As molas do colchão denunciaram a mãe e o rapaz empurrou o teclado sobressaltado para a cumprimentar com um sorriso cansado.

Quando se habituou à luz ou à falta dela, desceu as mãos em pala dos olhos e reparou na camada de pó nas partes esquecidas da secretária, uma tigela de cereais com iogurte e pedaços colados à colher. Não estava a desleixar-se só na escola, em casa também… Mas o pó agora não era importante e sacudiu-o da cabeça para preparar as próximas palavras. Do nada, nenhum dos discursos preparados no corredor lhe fazia sentido e deu por si focada no pequeno ecrã e no jogo. O boneco virado para si era tal e qual o seu filho, se o António tivesse duas orelhas a espreitar do cabelo negro – e uma espadita nas mãos. A cópia virtual do filho estava de pé, no cimo de um monte verde com manchas coloridas que podiam ser flores; havia árvores, pareciam árvores, mas congeladas no jogo e um enorme azul por cima da sua cabeça, o céu sem nuvens ou sol ou pássaros. Viu outros jogadores, pequenos bonecos que apareciam no ecrã a correr ou a saltar, alguns acompanhados de esferas coloridas, armados como o filho e atacarem criaturinhas que se desfaziam em píxeis iluminados.
A reunião!, obrigou-se a voltar ao quarto! A Júlia ajeitou-se na cama e inspirou fundo, e até foi fácil começar, o filho continuava calado desde que se cumprimentaram.
“Vim da reunião e a tua directora parecia preocupada contigo.”
Hum, respondeu apenas.
“Aconteceu alguma coisa na escola?” Expirou porque já não aguentava mais, “ou em casa?”
Apenas sacudiu a cabeça num não rápido.
A mãe agarrou-se às costas da cadeira e puxou-se para junto do filho que enrijeceu.
“Tens a certeza? Sabes que podemos falar. Ou com o teu pai, António.”
“Não aconteceu nada, mãe…” Chegou-se para a frente, mesmo não querendo fugir dela. Apertou os lábios e fitou o jogo com dois olhos tremeluzentes. A Júlia sentia que havia muito mais para meter cá fora, mas as palavras esbarravam na língua e nas boas intenções. Levantou-se e com e preparou-se para voltar ao corredor, “vou tratar da sopa” e devolveu a porta à sua posição.

Deixou de sentir a mãe quando entrou na cozinha; ouviu a televisão e a torneira a correr. Voltou a estar sozinho e soltou todo o ar que tinha aguentado, recuperou o teclado para voltar ao jogo: o avatar aguardava-o inerte, mas ganhou vida mal o António empurrou a tecla de movimento; saltou do monte e correu em direcção a um horizonte virtual, onde uma enorme cidade pixelizada começava a aparecer. De espada erguida e escudo de madeira no braço, o António ia sobrevivendo às criaturas que ocupavam as áreas circundantes da sua cidade inicial; as pequenas esferas coloridas com sorrisos tolos saltavam para lá e para cá, atrás dos jogadores. O dano era mínimo e a experiência era miserável, mas eram melhores do que nada e o António passava horas a varrer o mesmo mapa, a ganhar algum dinheiro para melhor equipamento. Acabou com mais uma e sentou a personagem para recuperar energia quando uma voz irrompeu das colunas baratas:

Boas, Serton! Deixaste o micro ligado.
O rapaz quase que caiu da cadeira! Não que o som estivesse muito alto, mas desde quando estava ligado, e o que ouviram? E se falassem enquanto a mãe estivesse no quarto? Puxou da câmara escondida na base do monitor, que fazia vez de microfone, e puxou-lhe o fio. Um assunto resolvido e ligou os auscultadores às colunas. 
Teclou um hey atrapalhado e esperou para ver de onde vinha a voz.
Quem era? Era a tua mãe?
Não demorou a descobrir o menu da guilda e ver que era um Vater que estava a falar. Havia mais três pessoas online, mas ele era o único com o ícone do microfone. Vater enviou-lhe um convite para falarem em privado e deixaram a sala principal. Serton era o nome do António dentro do jogo. Gostava do som sir-tóne, medieval e pesado – mesmo que não fosse muito original ou tivesse algum significado especial, mas era o seu e só por isso já valia a pena.
“Olá” voltou a enviar. A saudação a surgir em frente da alcunha.
Tinhas o micro ligado no chat, mas acho que o pessoal não ouviu… Tem cuidado para a próxima.
Agradeceu com todo o vermelho do embaraço a encher-lhe a cara. Queria fugir dali, desligar tudo e atirar-se para a cama, mas sabia que o Vater era um dos importantes da guilda, um dos fundadores mais experientes da guilda portuguesa que o tinha acolhido. O rapaz jogava há duas semanas e nunca tinha reparado que estivessem online; que aquilo era só uma formalidade para os jogadores do país; ninguém lhe falou e ele também não os chateou. Até agora…

Então, era a tua mãe?
Tornou a perguntar. Era uma voz de homem; jovem, mas não de criança. Não parecia chateada, mas havia uma dica de cansaço nas pausas.
“Sim.” respondeu prontamente.
Parecia preocupada, pigarreou no ponto final. Queres falar? Tenho algum tempo agora.
Teclou um S; depois um Não e apagou tudo. O António lançou um olhar nervoso pela nesga da porta: nada. A mãe ainda estava pela cozinha, agora era a vez de ele ouvir o baque baque, mas da faca contra a base de madeira que acabava com o raspar dos legumes para o lado. Alguém riu, era a televisão. Voltou ao ecrã do jogo e à cacofonia dos bichos e dos outros jogadores…
Então escreveu, “um rapaz da escola mete-se comigo.”
Uma arqueira correu à sua frente e disparou uma flecha, depois outra e outra até uma das criaturas sumir.
Bateu-te?
O António viu a arqueira banhada por uma luz dourada e a sentar-se a seguir. Bebeu de um pequeno frasco e não se mexeu mais. O rapaz respondeu que não sozinho no quarto, repetiu-o no chat. Não falou com a mãe, mas estava a falar com um estranho? Talvez fosse mesmo pelo melhor. Acrescentou que só o empurrou duas vezes. Vater não falou, mas ouviu o som de passos a correr pela relva.
E quando é que começou?
Tentou recordar a primeira vez de olhos bem abertos para visualizar a cena: a primeira vez… foi… “no segundo período. Depois da aula de História.”
Porquê?
Encolheu os ombros na vida real, talvez o seu avatar tivesse esses gestos para procurar depois. Agora só ouvia a televisão.
“Acho que respondi quando ele errou num exercício…”
Pois…
A arqueira saiu de onde estava e correu para uma criatura demasiado próxima do Serton, puxou a corda para si e atravessou-a com uma flecha azul. Ele viu o rato do tamanho de um cão grande a desaparecer com um só ataque. O equipamento dela era tão avançado e ele sem dinheiro para uma poção.
Vater não estava a responder, mas ainda estava ligado, até que:
Serton, vem ter comigo amanhã de manhã, OK? Mando-te um convite e vamos treinar os dois. Afinal vou ter de sair.
Nem teve tempo de lhe responder, Vater desapareceu logo do jogo.

O azul monocromático escureceu gradualmente para um cinza triste e não demorou a chover, mas as suas colunas eram tão fracas que uma chuva soava a estática. Com a noite, o mapa mudava e as criaturas sorridentes davam lugar a outras mais perigosas, pequenos humanóides todos de osso, despidos de roupa e outras protecções; alguns aguentavam os seus elmos que caíam quando ao serem atacados. E não havia nada lá dentro. Ele leu na página da cidade que eram os avatares dos jogadores que desistiram logo no início e que queriam uma nova oportunidade. Quando a noite começava, caçavam os outros jogadores com uma agressividade redobrada para lhes roubarem tudo.

Amanhã, desabafou, treinar com o líder da guilda. O que tinha uma coisa a ver com a outra? Podia não entender, mas era bom. Finalmente um bocadinho de sorte, só não podia contar à mãe que se ia encontrar com um estranho ou desligava-lhe tudo chateada como está…
Não jogou mais, desligou tudo e esperou que o chamassem para comer.
A Júlia reparou no filho a sair como um gato de rua, esfomeado por uma lata de ração húmida. Sentaram-se frente a frente, ela a observá-lo a levar a colher à boca e ele a fugir-lhe do olhar. Se os olhos se encontrassem, tinham de conversar e vinham as perguntas que não podia responder. Mesmo que lhe contasse, o que a mãe podia fazer? Ralhar com o colega? Isso seria pior!, então comeu mudo e calado a imaginar o treino de amanhã. A seguir veio a sobremesa, um pudim de pacote que ambos adoravam e que podia ser um suborno da mãe, mas mesmo assim, comeu e levantou a mesa sem lhe falar. Voltou para o quarto e para o jogo.

No outro dia, acordou numa casa vazia. Acabou o pequeno-almoço e deixou a louça na máquina, seguiu para o banho e sentou-se ao computador. Esperava não estar atrasado, mas foi o primeiro: o convite do outro chegou meia hora depois. Clicou e o Serton desapareceu da cidade inicial de Azure para aparecer no topo de uma encosta que descia para um enorme de deserto resplandecente. Vater já lá estava e recebeu o novato com amizade como se fosse um membro antigo. Ele jogava com um mago e vestia-se como um, uma túnica verde aberta nas pernas para correr e um capuz puxado para trás, deixando a cabeça descoberta. O avatar sorria com uma tatuagem na face esquerda, uma runa da sua classe, pensou, um símbolo de poder. As mangas abriam num bordado de flores e uma das mãos arrastava um cajado nodoso.
Serton achou aquilo tudo intimidante. Ainda usava o mesmo equipamento de quando começou a jogar: uma espada de ferro com um escudo de madeira, calças e camisa de cabedal que o protegiam de nada. Não se podia comparar ao líder de uma guilda.
Desta vez, falaram por texto.
“Bem-vindo ao Deserto de Vidro, Serton!”
Avançou cautelosamente e descobriu o fim da encosta, onde a terra passava a areia e a areia estava em chamas.
“Conheces a história?” perguntou o Vater.
Fazia parte de uma expansão muito avançada para o nível dele, então respondeu que não e o mago continuou a escrever em português quando estavam mais avatares por ali:
“Isto começou como um deserto normal só com areia que consegui atravessar há dois anos. Ainda me lembro: éramos cinco no grupo e quando chegámos a meio, vimos a nossa primeira lagarta. Enorme e toda de areia! Elas escondem as bocas no chão e comem-te se não tiveres atenção. Se perderes, começas tudo do início. Matámos uma e depois outra e não podias parar. Chegámos ao oásis tão fortes e tão ricos. Era o sítio perfeito para treinar, mas quando lançaram a segunda expansão, voltaram a meter os dragões elementares e a Araneia, o dragão do deserto, queimou tudo daqui até à outra ponta. Ela era tão forte e o seu hálito tão quente que derreteu a areia em vidro.”
O António engoliu em seco no quarto, mas Serton manteve-se firme. Serton, o bravo. Serton, o tolo.
“Vamos lutar com o dragão?” Teve de perguntar a medo.
Nope”, respondeu o Vater. Muito cedo, com o nível que tinha nem conseguia andar no deserto sem receber dano e os dois seriam despachados em segundos. Talvez quando a guilda estivesse reunida, mas não hoje. Então o mago recuou e ergueu o bastão de onde desceu uma órbita prateada, um pequeno ovo que cresceu para um pássaro, que continuou a crescer até ser maior do que o mago. A ave era majestosa, as suas penas de um prata vistoso, um lombo robusto para ser montado e um pescoço alto e forte como uma torre, terminando num bico aquilino. Bela e perigosa! Serton vira outras montadas ao longe, mas nunca à distância de um toque. Vater acariciava-a e ela respondia como um cachorrinho. Incrível, pensou para si sem denunciar o seu espanto sem microfone.
Vater saltou para cima da ave e convidou o companheiro a subir. Não havia hesitações num mundo digital, mas quando deu por si a sobrevoar o deserto só não caiu porque o jogo o impedia, mas imaginou-se a cair naquele azul brilhante, iria queimar-se ou cortar-se nos mil pedaços de vidro? Nenhuma opção era válida. Concentrou-se no ecrã e nas texturas que iam carregando.

Avistaram o oásis. Sem árvores, água, era o único sítio sem vidro, com uma casa arruinada bem no meio. A montada contornou a casa que era uma mansão, uma construção do jogo base há muito abandonada; aterrou dentro dos muros destruídos e deixou os jogadores caírem num chão coberto de cinza acumulada ao longo de várias expansões sem que nenhum escravo digital as limpasse do jardim. No quarto do António, soprava um vento antigo das colunas que atravessava a mansão poupada à fúria da Araneia, já sem portas e janelas, eram olhos vazios de vida que observavam os jogadores. Serton sentiu-se sozinho acompanhado. Tinha de ler melhor a história do deserto quando acabasse ali.
A ave desapareceu em segundos, deixando-o mais inquieto e preso.
“Onde está o dragão?” Perguntou e o Vater respondeu que estava para baixo, no oásis, na areia, mas que não podiam activar a batalha ainda.
“E o que vamos fazer?” Voltou a questionar o mago. Ainda estava sozinho em casa, a mãe devia ter saído às compras, então sentia-se duplamente sozinho. Escancarou a porta para ver melhor a porta de casa.
“Treinar” respondeu e noutra linha: “tu vieste treinar. Eu vim ver. Não te preocupes, criei um grupo e vou estar aqui para te curar, mas vou ensinar-te o básico. Vou passar agora para o micro para não te atrapalhares a ler.”

Vater caminhou sobre as cinzas que não reagiam às suas botas e saiu para fora do muro. Avistou uma das criaturas carbonizadas e arruinadas para além de qualquer forma reconhecível. Não tinha roupas ou quaisquer feições para além de píxeis negros e uma espada pesada que usava como apoio no vidro. Assim que avistou o mago, a besta cambaleou para dentro do muro, mas este saltou para trás do jovem guerreiro que se viu entre o adversário e o mestre.
É a tua vez! Vá, ataca!
Mas o rapaz estava tão atrapalhado que mal sabia equipar as armas. Apareciam e desapareciam das suas mãos até que a criatura estava em cima dele. Ergueu a lâmina ao ar e congelou no início do golpe. Serton recuou e equipou-se com calma. Viu o Vater a meio de um feitiço, tinha sido ele a congelar o ataque.

Lição número um: estuda o adversário. Olha para ele queimado. Está morto e mal se aguenta em pé. É muito forte e não tens muitas aberturas, mas não tem protecções. Vá, outra vez!
Acabou com o feitiço e a criatura desceu o braço com a espada ao chão, caiu trapalhona. Urrou e correu para o Serton de escudo ao peito. Quando recuperou a distância, voltou a erguer o mesmo braço direito para desferir o mesmo golpe de cima, mas desta vez, Serton amparou a lâmina e caiu ao chão quando a força do outro o superou. O adversário preparou-se para repetir o mesmo golpe e congelou.
Respirava muito rápido sozinho naquele quarto. Ainda tinha uma garrafa de água que bebeu sofregamente.

Bom, mas ainda não. Dois: conhece-te. habitua-te a ti, ao teu corpo e ao que consegues fazer na altura. É muito importante saberes onde estão as teclas e o que fazem.
O António encostou a cabeça dos dedos ansiosos às teclas dos ataques, pronto para a próxima ronda. O Vater riu-se e gozou que esta devia ser a primeira lição.
O teu equipamento é muito básico, mas sem problema. Podemos trabalhar a tua agilidade.
O avatar de Vater voltou a ergueu o bastão e o Serton foi rodeado de outra luz prateada. Sentiu-se… bem, leve! Aumentou a distância do adversário e preparou-se.
Tenta desviar-te! Também é uma boa dica!
A besta negra tropeçou quando recuperou movimento e grunhiu para o guerreiro. Correu. Serton descansou a espada para baixo, braço relaxado junto ao corpo, só com o escudo à frente. O mesmo braço, o mesmo golpe, mas desta vez o jogador desviou-se para a esquerda com a agilidade de um sopro do vento. O monstro acertou nas cinzas e voltou a cair quando o Vater o lembrou do escudo que usou para o empurrar. E agora o golpe: Serton espetou a ponta da lâmina nas costelas do adversário para tirar uma quantidade de dano miserável. Uma e outra vez, mas por mais que tentasse, o nível dele não era suficiente ter impacto.
O borrão negro contorcia-se como uma barata tonta para se virar, e quando conseguiu, o guerreiro saltou para trás sem saber o que fazer, mas acabou tudo muito rápido quando o mago interveio. O monstro desapareceu num feixe de luz e estava feito: derrotaram o adversário e a experiência fluía para os dois jogadores, mas só o António viu o seu Serton a subir vários níveis. Estava mais forte e sentiu-se confiante com as novas habilidades e atributos reforçados.

Três: nunca estás sozinho, ouviu do mago. Fala com a tua mãe. Ela quer e pode ajudar-te.
“Mas o que pode fazer?”
O que vocês decidirem. Serton, há pessoas defensivas que não gostam de ajuda. O teu colega parece ser assim, mas tu não tens de o ser. Não há mal em procurar ajuda, é por isso que estás numa guilda. Para derrotarmos dragões em grupo e lá fora tens outra, a tua mãe e os teus amigos para te ajudarem com outros dragões. OK?
“OK… Obrigado, Vater.”
Ah, que é isso, pá! Mas olha este truque: o bicho era um morto-vivo. Já estava morto e só precisava de um curativo que funciona ao contrário neles! Bem, vou-me. Tenho de fazer o almoço à família. Fica bem!

Vater foi o primeiro a sair. Num segundo estava a olhar para o avatar do mago, no outro estava a olhar através dele, para a mansão abandonada sem porta. Um dia iria voltar ali. E saiu do jogo. Afastou o teclado e abriu a janela para convidar a luz da manhã quase a chegar ao almoço. Ouviu a porta a abrir e a mãe a chegar com sacos cheios para o corredor. Apressou-se para o corredor com a passadeira verde e para a mãe que se assustou com o filho, e até deixou cair as chaves. Ansioso como estava, o António contou-lhe tudo ali e ela deixou o filho falar.
Enquanto faziam o almoço, ela sugeriu falar com os pais do rapaz, mas quando o António lhe implorou para nunca o fazer, sorriu e tranquilizou-o de que seria em último caso, mas que o outro teria de se ver com ela!

Sim, eram uma família, uma guilda.

A semana de aulas seguinte foi como as outras: na mesma como a lesma. O António arriscou a participar aos poucos, respondendo a alguns exercícios, mas esperando pela sua vez porque o professor estava lá para ajudar e não ele.
Estava a sair da última aula quando o empurraram para a frente. Não caiu porque foi contra um colega. O António perdeu o sorriso assim que se viu à frente do colega bully. Não lhe tinha feito nada, mas isso já não importava, o outro só queria arranjar problemas. Onde estava a coragem que tinha guardado durante a semana? Saltou com o empurrão? Perfeito, suspirou.
Já falas, já falas, já falas? Cacarejou quem o empurrou. Parecia uma galinha engasgada, mas sem a graciosidade da montada do Vater e riu ao imaginar o rapaz a tentar voar.
Já ris, já ris, já ris? Repetiu entre empurrões que o metiam contra as portas dos cacifos no corredor. Os outros miúdos esgueiravam-se à pressa, mas muitos ficavam a ver numa rodinha, outros a picar e alguns a filmar com os telemóveis. Cansado e farto daquilo, e envergonhado, voltou a lembrar-se do Vater e do treino. Não voltaram a falar desde então, mas as lições ficaram com ele:
Estuda o adversário, e sentiu o punho cerrado a empurrá-lo, a voz gozona estridente. Ele era mais alto, mais forte, mas que atacava sempre da mesma maneira.
Conhece-te, era mais baixo, estava contra os cacifos, não tinha como sair dali, mas viu que a porta de uma sala ainda estava aberta. Ó, António. António, o bravo; António, o tolo que enrolou as alças da mochila ao braço. E quando viu o último empurrão, desviou-se para o lado oposto, para a porta aberta. O matulão foi em frente, contra a porta do cacifo, mas não esbarrou com muita força, o suficiente para que o impacto metálico fosse ouvido pela directora que acelerava da sala aberta. A professora apanhou o António a fugir para a sala e o colega encostado aos cacifos.

As crianças fugiram quando a professora acabou com a confusão, nunca estás sozinho.
“Vocês os dois vêm comigo.” E não precisou de dizer mais nada, não levantou a voz, não ralhou nem castigou, apenas voltou para a sala e eles seguiram.
O António contou à mãe o que aconteceu e esta confessou que tinha falado com a directora. Estava tão preocupada com o filho que era o mínimo que podia fazer, o pai apoiou-a nisso, e não tinha falhado à promessa de falar com os pais do outro rapaz, mas o filho não se importou! Comeram mais sopa e outra sobremesa de pacote, afinal tinham de celebrar!
A conversa não saiu daquela sala e ficou entre os três. Parte dele quis acreditar que subiram de nível, o colega deixou de implicar com ele e o António aprendeu a ser mais paciente nas aulas. Ninguém ficou amigo ali, mas também não havia milagres ou atalhos para conseguirmos o que queremos, apenas treino e muita persistência para derrotarmos os dragões da vida.


Tinha levado este conto a outro concurso, o meu primeiro concurso infantil e como não venceu, ei-lo aqui também!
Descobri duas coisas: não sei escrever para crianças nem fantasia. Apesar de adorar o género, sinto que me falta algo para escrevê-lo. Ainda assim, estou orgulhoso!
A primeira versão, a do concurso, era mais pequena devido aos limites de palavras, tanto que passei alguns dias a expandi-la com alguma – bastante – dificuldade porque não saía nada.
Lentamente, e com a cabeça a melhorar, senti-me criativo e inspirado para terminar tudo numa tarde quente. E não desgosto da história.
Espero que gostem também! E obrigado.