Canções de Embalar (Ou Como Ela Desceu da Torre)

Um casal vai viver junto, mas ela leva as insónias consigo. Seria de esperar que as arrumações os deixassem estafados para dormir, mas a Carolina é a única desperta para a noite. Entre a vida nocturna do cão, canções de embalar parolas e departamentos do sono, a Carolina enfrenta a sua torre que a leva até à Lua.

Ora – Olá! Hoje é 30 de Setembro de 2021, dia de São Jerónimo e do Tradutor. E é o dia de lançamento do meu conto Canções de Embalar (Ou Como Ela Desceu da Torre)!
Espero que estejam tão entusiasmados quanto eu, portanto aqui vamos nós!

O conto está disponível gratuitamente em várias plataformas:
a) nesta página!
b) na loja da Kobo!
c) na loja do Kindle, mas como a Amazon não me deixava ter o livro grátis, tive de meter um preço. Ignorem, peçam-me o PDF/ePUB ou leiam aqui.

É um conto curtíssimo, conseguem ler durante a pausa do trabalho, do almoço ou antes de adormecerem. É acolhedor e estranho q.b.
Sem mais nada a adiantar, espero que gostem! Se gostarem, digam-me algo no Goodreads! Se não gostarem, digam também.

“Dormes?” perguntou uma voz no escuro, suada e distante como se viesse de fora do quarto. Ninguém respondeu e voltou a perguntar.
“Sim…” respirou a outra voz.
“Desculpa…”
Só que a Carolina não tinha bem culpa de ter insónias, mas também tinha um hábito de o chamar durante a noite e, muitas vezes, para nada ou para saber se continuava vivo e ao lado dela. O Tiago sabia-lhe das insónias, mesmo antes de começarem a namorar e mesmo antes de a convidar a passar um fim de semana na sua casa. Apesar de o convite não envolver dormir a noite toda, não demorou até que um fim de semana evoluísse para uma semana, mês e uma relação a caminhar para anos. Durante esse tempo, as insónias eram uma presença constante, um terceiro elemento na relação que passava mais noites com a namorada do que ele. Ele nem era ciumento, até porque gostava de dormir, mas como pessoa que se preocupa e que gosta da sua parceira, sentia-se impotente para a ajudar.

E eles tentaram de tudo: meteram uma TV no quarto; tiraram a TV; leram em silêncio; leram um para o outro; jogaram consola; meditaram; foderam até se cansarem, mas nada. O sono roubava-o mal aterrava a cabeça na almofada e ela continuava a voar por aí, às vezes sem trem de aterragem, sem um motor ou sem as duas asas. Em algumas noites aflitivas, só queria apontar o avião para baixo e atirá-lo contra o chão para dormir.
Chamava-o.
Ele respondia.
E desaparecia logo, deixando o piloto automático.
“Tiago…” Encontrou-lhe a mão debaixo dos lençóis quentes. Os dedos entrelaçaram-se e ouviu-lhe os lábios a descolarem num grunhido que soou a um estaciona sonolento. Uma piada, um segredo, um convite para se aninhar, fazerem conchinha e, de alguma forma, contagiá-la com o sono. Perdeu-se contra o corpo adormecido do namorado que a cobriu com o braço livre, esquecendo o outro numa posição desconfortável para ficar dormente.

O sopro dos lábios do namorado sussurrava-lhe a letra de uma das duas músicas que sabia de cor, a Estou na Lua – aquele fantástico êxito dos noventa que o meteu e ao resto da criançada a cantar até entenderem o final em inglês. A outra era o hino nacional.
Embora detestasse a parolice da música, ouvi-lo a tropeçar pelo estou na lua, não me chateies que agora estou na lua sabia ao mesmo que uma canção de embalar. E cada palavra era um passinho em direção ao vale dos lençóis com enormes torres em forma de peças de dominó que faziam filas longas. Talvez aquela noite, com ele a cantar e com o metrónomo da sua voz, fosse o dedo que derrubava a insónia para adormecer a horas de gente. Só que a voz dele perdia para o sono.
“Não vás…” miou.
“Não…” respondeu, mas foi-se e deixou-a acordada e sozinha na ponta da cama. A Carolina virou-se e puxou do portátil da gaveta aberta. Abriu a Netflix e entrou no único perfil criado, mas acabou por não ver nada.

*

Na manhã seguinte, o Tiago foi dar com uma Carolina a escavar numa tigela de cereais.
“Dia…” resmungou ao servir-se do resto do café. Pela janela, o mundo e a nova praceta continuavam adormecidos, a nova casa e o novo prédio também estavam calados e se não fosse o mastigar dos cereais da namorada, nem ele teria a certeza de já estar acordado. Nisto, ouve-se as patitas do Vitorino a sapatear pela cozinha mais bem-dispostas do que as dos donos humanos, mas há que considerar que os cães são fáceis de agradar: os donos estavam de pé, tinha as tigelas mudadas e a probabilidade de ter feito asneiras na outra ponta da casa era grande. Até agora, o pequeno akita estava a ter um bom dia, mas não podia mentir porque os outros também o foram. Não são todos os dias que tem uma casa nova para cheirar e sons estranhos para ladrar.
Já os donos tinham bastante para arrumar, mas esta zona da casa, a cozinha, era uma espécie de zona neutra já semiequipada. Foi chegar, enfiar as coisas nos armários e tentar bloquear o resto do caos. E o pó, sem esquecer o pó das coisas que enfiaram nas caixas sem limpar. Com o que havia para arrumar, seria espectável que ambos chegassem derreados ao fim do dia e dormissem logo, mas isso era na teoria. Na prática, era bem diferente para a Carolina que continuava a acumular cansaço e impaciência.

“Voltei a sonhar com ele” anunciou quando o namorado estava para sair da cozinha com o cachorro atrás, mas encarou a namorada da ombreira da porta e deu um gole no café a arrefecer – nem um fio de fumo saía da caneca. A cauda do akita varreu a pausa grávida até à Carolina partilhar o resto dos detalhes do sonho, mas quando se referia ao ‘homem de branco’, não se referia a um homem branco, mas a um homem todo vestido de branco. A cara nunca era a mesma, mas a roupa era sempre uns mocassins brancos, chinos brancos e uma camisa branca enfiada para dentro – como se a roupa fosse a entidade autónoma e senciente a escolher diariamente um novo ser para a vestir.
O Tiago não o via, mas a Carolina dizia que o via sempre no mesmo sítio, junto à porta do quarto com uma prancheta e caneta. O homem de branco não ficava a vê-los a dormir porque isso seria demasiado estranho e nem o cão dava sinal. Apenas ficava ali, escrevia qualquer coisa e a Carolina finalmente adormecia. Falaram de sonhos lúcidos, paralisia do sono e até de abordarem um terapeuta, mas a figura do homem de branco não era ameaçadora nem violenta, e a Carolina sabia que a sua presença significava que não ia demorar a adormecer. Da casa dos pais, à casa do namorado e até a esta nova, ele era a constante na mudança, o seu João Pestana privado.

“Queres vir ao pão?” convidou o Tiago quando acabou o café e quando não sabia o que responder.
“Ná… Acho que vou às fotos” decidiu como se flutuasse naquelas palavras e na antecipação da tarefa. A casa estava longe de arrumada, mas com as mudanças, a mãe dela tinha descoberto uma daquelas caixas de plástico de arrumação cheia de fotos e negativos que a Carolina quis para si. Distraía-se rodeada de retratos antigos; sentia-se em casa rodeada por antiguidades como se ela própria fosse uma deslocada do seu tempo. O Tiago também sabia que era uma desculpa para se esquivar do resto, mas via-a tão em paz. E ir ao pão era a sua desculpa para também se esquivar. Pensar em mudanças é muito bonito e romântico, mas aquela parte do meio que envolve mesmo a acção da mudança já era mais chata. Com tanta desculpa, o único que saía a ganhar era o cão Vitorino que na sua cabeça já associava o pão à rua.
O namorado tamborilou na porta e despediu-se com um até já. Repetiu a mesma roupa das limpezas e saiu disparado escadas abaixo com o cão a puxá-lo mesmo sem se lavar.

*

Homem e animal regressaram a uma praceta muda e calada – nem parecia que iam a meio de uma semana. O Tiago vinha entusiasmado com os novos caminhos que tinham descoberto e o Vitorino a arfar e a puxar agora para casa. Enquanto via do correio, a porta da rua trancou-se com um suspiro, mas foi quando puxou da chavinha da caixa que sentiu um puxão no braço, seguido de um arrepio que o percorreu em menos de um segundo. Reparou que o bracinho pertencia à vizinha da cave, a dona Roseta, uma senhora tão diminuta e de expressões ternurentas, embora marcadas pelo esgotar dos dias. O cão continuava pateta na presença da senhora e nada tinha feito para lhe denunciar a presença. Sem saber como reagir, se puxava do braço ou se esquecia dele ali para sempre, reparou-lhe numa sombra confusa a sumir-lhe dos olhos como uma nuvem atrasada para ir chover a outro sítio.
E depois, “Mãe!” chamou a voz urgente da senhora que já tinha visto a tratar das escadas. “Largue o vizinho, então?”
A filha apressou-se como se fosse ela uma mãe aflita, removendo o braço que apertava o Tiago e afastando-a do vizinho. E fê-lo sem uma pitada de brusquidão, mas com toda a gentileza e paciência de quem começa a limpar da cave até ao terceiro e depois desce para repetir todas as semanas. E depois sorriu ao rapaz, agora mais sossegada.
“Não posso passar um pano na cozinha que ela me foge, vizinho.”
“Não se preocupe” quis tranquilizá-las. “Ela está bem. Estamos todos bem.”
“É mais a aflição de sair sozinha e magoar-se” tomou as mãos da mãe nas suas que parecia sentir-se mais em paz no contacto com a filha. “A cabeça já não é o que é quando damos para velhos e a da minha mãe, nosso senhor a guarde, não é boa para ela.”

Ele não queria passar por rude porque até queria manter uma boa vizinhança, mas esperava secretamente que o Vitorino começasse a puxar para cima. Só que, mais uma vez, o pateta do cão sorria para as senhoras como se esperasse alguma coisa. O dono desconfiava porque também começava a virar o nariz para um aroma gostoso a algo que subia da cave. Então, ofereceu a sua disponibilidade às senhoras para o que precisassem, mesmo sem saber o que isso significava e começou a esgueirar-se para as escadas, mas desta vez foi a mão da filha a agarrá-lo pelo braço.
“Antes d’ir à sua vida, o menino ou a sua esposa gostam de rissóis e empadas? Faço para fora e vendo ali no café” anunciou com um sorriso gabarolas. “Mas se quiserem, aceito encomendas. É só descerem e virem pedir à Roseta – sim, a filha também se chamava Roseta – Ó Roseta, queria tal e tal de rissóis e depois acertamos as contas. E se precisarem de algum conserto em casa é o mesmo, ó Roseta tenho isto ou aquilo, dê-me cá um olho. Não ligue aos que enchem o correio de papeletas que são todos uns aldrabões e levam-lhe o dinheiro todo.”

Com tudo dito, as duas senhoras desceram à cave com a Roseta mãe a gabar o novo vizinho e a Roseta filha a pedir para se comportar entre shhs. Também o Tiago subiu aliviado com o cão para casa, onde uma Carolina estava agachada contra o sofá e com um círculo de fotografias à sua volta como se preparasse para invocar algo do passado.
“Ouvi vozes nas escadas. Está tudo bem?” ergueu a cabeça quando o viu na sala e a pendurar a trela do Vitorino que já devia estar junto às tigelas.
“Já alguma vez viste uma velhota no prédio? Tipo, sozinha no átrio ou nas escadas?” Ao qual ela abanou a cabeça confusa.
“Bem, é a mãe da porteira. Já a vimos a varrer as escadas.”
“E a regar as plantas, sim.”
“E também nos quer fazer rissóis” comentou. “Cheiravam mesmo bem. Um dia experimentamos.”
“Tenho de ter cuidado com a competição no prédio, vê lá tu” troçou a Carolina, mas o tom entristeceu quando o Tiago lhe contou que viviam as duas juntas porque a mãe era doente.
“Parecia perdida, entendes? Confusa.”
“Alzheimer?”
“Capaz.”
“Li que as pessoas que dormem pouco ou mal têm mais probabilidade de terem alzheimer mais tarde. Acabaste de ver o meu futuro, foi o que foi.”
“Vá, não gozes… “
“Não estou, juro!, mas vou ter de escrever aquelas notas para desligar o fogão, vais ver” e riu-se.
“Precisas de ajuda?” o Tiago quis desviar o assunto e sentou-se um nada afastado das fotos no chão.
“Sim, olha para isto!” e passou-lhe uma única fotografia de uma mão cheia delas. Ele virou a imagem para si e depois o verso, mas não havia nada que chamasse à atenção para além de uma estrutura metálica que crescia para além das margens do retrato.
“O que estou a ver?”

Sem pessoas, animais, monumentos ou paisagens, o namorado tentava olhar para lá do metal branco e vermelho e para a única linha de árvores à espera de encontrar alguma coisa a olhá-lo de volta. Talvez fosse daquelas ilusões ópticas que só fizessem sentido passado algum tempo ou vistas de um determinado ângulo, mas a Carolina ajudou-o:
“Tirei essa antes de mudar de casa.”
E antes que ele insistisse no óbvio, explicou que era “uma torre de comunicações ou de rádio, não sei. Sei que tínhamos a mania de a trepar e eu era das poucas miúdas que subia mais alto. Ninguém ia muito longe porque aparecia sempre alguém aos berros para descermos.
Um dia subi, tuc tuc tuc e ninguém apareceu. Então subi mais e ninguém estava a prestar-me atenção porque as crianças são mesmo assim. Fiquei sozinha lá no alto, mas em compensação via o mundo todo dali: a minha casa duas ruas à frente e a casa da minha paixoneta do ciclo. Também via o toldo amarelo do restaurante que fazia os melhores bifinhos com cogumelos e árvores, tantas árvores! E todas as pessoas eram tão pequeninas.”
As palavras dela flutuavam como balões de memórias enchidos após anos e anos em caixas e desapareciam nos olhares nostálgicos dela e curiosos dele, só o Vitorino é que continuava a ressonar desinteressado.
“Nada para além do vento…” suspirou com um sorriso rabiscado nos lábios. “Às vezes parecia gatos assanhados, mas noutras ouvia-o a segredar. Num dia, vi as nuvens a andar de uma ponta para a outra e achei que era o planeta a girar! Não era muito inteligente na altura, mas compensava em coragem!”

O Tiago devolveu-lhe a foto por cima do ombro e recebeu outras com mais estórias, mas não tão interessantes como a da torre. Aos poucos, as fotografias iam sendo organizadas; as caixas esvaziadas e as suas vidas iam sendo arrumadas em estantes, armários, gavetas ou onde houvesse buracos. E numa dessas noites de limpezas, até provaram dos rissóis da vizinha para não estarem a cozinhar – confirma-se, eram mesmo bons.

*

São os cães que passeiam as pessoas, não o contrário. E o Vitorino puxava para aqui, puxava para ali e puxava em frente com um sentido de missão de farejar que os donos não partilhavam, mas que faziam o seu melhor para acompanhá-lo e apoiá-lo, excepto quando cheirava porcaria.
“Ei, estás bem?” o Tiago perguntou quando reparou na namorada a demorar-se no caminho.
“Um cadito cansada, só isso.”
“Voltamos para trás?”
Recusou. O cão raspava na estrada.
“Hoje dormimos cedo” plantou-lhe um beijo no cabelo enquanto puxava pelo Vitorino.
“Não me faz grande diferença porque vou estar a olhar para o boneco.”
“Eu não entendo, mas o que sentes quando estás na cama, tens sono ou estás cansada, mas não consegues adormecer? Olho para ti e parece que me vais cair para trás.”

O namorado perguntou como já o havia feito antes, mas as respostas eram sempre vagas ou bloqueadas com um não sei, o que queres que te faça, mas hoje a Carolina encarou-o com vagar e chupou o lábio inferior sem se decidir numa expressão. E então começou a explicar, ou a tentar explicar, o que sentia quando se deitava ao comprido na cama e não conseguia pregar olhos, porque ficava todas as noites à porta do sono para a encontrar trancada. A explicação não foi bem uma explicação, mas foi o melhor que conseguiu:
“Imagina que começas um dia com uma caixa, OK? Acordas, sais da cama e tudo o que fizeres durante o dia vai para essa caixa: comer?, caixa. Andar de transportes?, caixa. Trabalhar, a pausa do café e do almoço, ir ao ginásio, beber uma cerveja, chegar a casa, tratar da casa. Respirar, mijar, existir? Tudo para a caixa. E quando tiveres a caixa cheia, deitas-te, fechas bem, adormeces e envias a caixa sabe-se lá para onde. De manhã, acordas com uma nova.”
Ele começava a entender, mas desceu a cabeça para não encarar o resto. A Carolina procurou os olhos do namorado e pediu-lhe para olhá-la de volta.
“Isto és tu, Tiago. Quando me deito de caixa cheia, não a consigo fechar nem tenho forças para mais. Eu tento e tento, mas a cada dia e a cada noite, a caixa enche, enche, enche e sai tudo para fora. E só adormeço com a porra daquele homem que me deixa uma miséria de caixa.”
“Não é grande estafeta.”
“É uma merda, isso sim.”
Mas depois daquele discurso, a Carolina sorriu-lhe, está tudo bem, não tens de ficar assim eele devolveu-lhe outro sorriso, mesmo que inseguro.
“Não posso dizer que entendo, mas obrigado. Foi uma boa comparação” e apertou-a com um braço esticado pela trela porque o Vitorino estava sem sentido a ver outro cão a passar. Para dizer a verdade, a Carolina estava bastante orgulhosa da sua metáfora improvisada ali numa rua dos subúrbios cheia de carros em cada lado. Agora que tinha as palavras, queria passá-las à prática para fechar a sua caixa com a do namorado, mas…

*

…as estórias são escritas quando as coisas acontecem e numa noite igual às outras, o Tiago já dormia com a cara enterrada na almofada entre roncos e meias palavras comidas; o Vitorino tinha ficado na sala e a Carolina era a única com a vela acesa, mas ainda estava na fase de admirar o silêncio da casa nova e a noite que entrava sorrateira pelos estores da cozinha para preencher os espaços vazios e os cantos que não prestamos atenção ao limpar.
Às tantas horas, a sua atenção fugiu para as patitas do akita nos tacos do corredor e pela tijoleira da cozinha; escutou-o a beber água sofregamente e a dar com a tigela contra a parede; acompanhou-o de volta à sala, com os mesmos sons em reverso; e deixou-o quando o animal saltou e raspou no sofá. Decidiu ali que o seu tempo seria mais bem aproveitado se continuasse a prestar atenção ao cão, mas houve outro detalhe que a roubou na direcção da porta do quarto: o homem de branco.
Mesmo no escuro, encontrou-o nos intervalos do silêncio da casa a escrevinhar na mesma prancheta e esperou pelo final dos toc toc toc na placa de madeira para tentar falar, mas as palavras morriam-lhe nos cantos dos lábios e escorriam-lhe das bochechas para a almofada.
Havia uma fúria amarrada dentro dela, mas o corpo continuava-lhe pesadão para se mexer, não lhe pertencia, a cabeça traía-lhe as ordens e só os olhos gritavam para que o homem de branco olhasse para o seu lado da cama. O pior, e se este fosse o seu calvário todas as noites?

Ei!, ei, ei!, repetia para a figura de branco que a ignorava até erguer a cabeça e sorrir-lhe do fundo do quarto.
“Vamos?” convidou num tom melífluo de funcionário público prestável. Não era um convite, mas uma ordem, uma mão que tomou a da Carolina e puxou-a do torpor, devolvendo-lhe a sensação do centro às extremidades.
O homem saiu primeiro, mas ela decidiu que não, que não ia sair. OK, ia sair, mas ia tomar o seu tempo. Então sentou-se na cama e sentiu a mão do namorado no seu regaço como se por receio de a perder na viagem entre a cama e a casa de banho e ouviu-o a conversar. A sua língua e lábios construíam palavras que começavam no sonho e terminavam no quarto. Como ela, deveria haver gente confusa e a tentar decifrá-lo no outro lado, a responder de volta, a pescar por segredos. Mas nada, sorria e calava-se.
Nessa noite, talvez pelo hábito das insónias e de ser chamado, julgou a ouvi-lo a cantar a sua canção de embalar como um mantra ou um feitiço para a entregar ao sono, mas eram apenas os fiapos da outra música parola. Foi o suficiente para lhe dar um sorriso e passou-lhe a mão pela barba nocturna que despontava. O Tiago sacudiu a cara e voltou a enterrar-se na almofada.
Deslizou da cama, atravessou sorrateiramente o escuro do quarto e fez algo que nunca imaginaria em vida: atravessar para a luz, mas fê-lo e esperou pelo melhor. Deixou de ouvir o namorado a respirar atrás no quarto e o cão a ressonar na sala em frente, apenas o tinir de um sítio calado e a antecipação de um novo destino; os pés saíram dos tacos irregulares do chão para algo húmido e frio que lhe devolveu o aroma verde da grama acabada de cortar. Seguia cega até os olhos se habituarem à nova claridade, mas quando conseguiu afastar a mão da cara, encontrou-se com o seu guia de branco diante de uma enorme torre de comunicações ou de rádio, não sei, ouviu na sua voz algures – roubada da fotografia, das memórias de criança, para ali estar à sua frente.

“Não me parece má, não achas?” comentou de mãos nos bolsos, prancheta entalada entre os braços e com um misto de orgulho e missão cumprida na sua postura e movimentos. “Toda tua. Começa a subir e diz-me o que achas.”
“Morri?” só conseguiu perguntar.
“Por favor, nem digas isso. Ainda sou bom no meu trabalho, mas obrigado” riu, mas as notas da disposição soaram-lhe forçadas.
“Então, calma contigo” travou-o. “Se não estou morta, então isto é o quê? Um sonho? E quem és tu?”
“Fazemos isto todas as noites, mas sim, é o teu sonho” puxou da prancheta para coçar o queixo livre de qualquer pêlo facial. “Eu sei, e lamento dar-to tão tarde, mas é o que está no horário.”
Durante um breve momento de confusão que só a deixou mais enervada, a Carolina continuou a exigir as respostas de quem era, de onde veio e porque adormecia tão tarde, mas o homem de branco deflectia-as com a destreza de um nove às dezoito.
“Esse é outro departamento” acrescentou e a batata passava para outras mãos. “Vamos?”
“Não!” cortou com uma clara frustração florida no rosto. “Isto não faz sentido nenhum: temos um problema, têm de resolver.”
Uma pessoa normal suspirava, tinha sido um dia longo, ambas estavam cansadas, era normal!, mas o homem de branco apenas sorriu com umas curvas simpáticas e explicou-lhe com o mesmo tom de mel que continuava a lamentar, mas que iria tentar ver da situação da Carolina, mas também terminou a dizer que não estava a pedir-lhe para subir, estava mais a dizer-lhe. E que estavam a atrasar-se. Mas a Carolina recuou na direcção da porta e a porta tinha sumido para quase esbarrar na torre; enfrentou o homem de branco e viu-o junto a outra torre – ou à mesma torre? Não, era a mesma torre e quando se virou, aquele pedaço de mundo virou com ela.
O homem de branco traçou a prancheta ao comprido como se traçasse a linha do horizonte da sua criação, mas antes de ir deixou-a com uma última nota quando a analisou de cima a baixo: “Pode ser um pouco escorregadia de meias, mas foi o que arranjámos à última hora.”

E antes que pudesse ripostar, sentiu o frio do metal a escapar-lhe das palmas das mãos e o peso do nada a sustentar-lhe os pés. Rapidamente, fechou os dedos numa barra encarnada e puxou-se para abraçar a torre, resultando numa bruta joelhada contra os degraus, mas só quando se sentiu em equilíbrio é que lá foi com a mão, mas estava bem, estava tudo bem, tirando o facto de estar pendurada na torre da sua fotografia ou uma réplica quase perfeita. O pulsar da dor e do pânico demorava a desaparecer, o coração descia ao seu canto e as pálpebras abriam-se timidamente para estudar onde estava – a flutuar no ar, só que não exactamente. A Carolina estava bem segura numa enorme torre metálica plantada num mar de verde que crescia para além da base da torre, com filas e filas de árvores e corredores de vivendas baixas.
Esta merda não está a acontecer, não está! e começou a descer lixada e a bufar entre dentes, mas à medida que descia para baixo, via-se a subir para cima e outros pleonasmos, mas a verdade é que não estava mais próxima do chão desde que decidiu descer da torre. A distância ao solo verde aumentava, acelerou, saltou degraus e tentou deslizar como via nos filmes; um exercício de frustração por afastar-se cada vez mais da porta para o quarto e daquele homem de branco. Estacou. Apanhou o ritmo do fôlego e notou algo de estranhamente familiar naquele cenário, uma memória que não sabia se lhe pertencia ou se tinha visto algures, mas as peças daquele puzzle começavam a encaixar. Duas ruas à frente, avistou a sua casa; logo a seguir, a casa da sua paixoneta do ciclo; e o toldo amarelo ovo-estrelado do restaurante que fazia os melhores bifinhos com cogumelos a fechar os corredores de casas. E as árvores continuavam a ser muitas, mas não havia crianças sentadas ou a brincar na relva, pessoas na rua a fazerem a sua vida ou carros para trás e para a frente. Aquilo era um quadro, uma pintura demasiado bonita.
Talvez por estar muito alto...  desabafou. A Carolina deitou-se para trás à distância dos braços e respirou as recordações daquele sítio que cheiravam a uma boa infância e saudades, mas também a comida, a almoços desenrascados com rissóis fritos, arroz a acompanhar e ao café de máquina dos pais. Resignada, não teve outro remédio se não subir um braço, uma perna, outro braço, outra perna, tudo muito mecânico para cima, upa e upa até trocar as vistas familiares pela altitude.

Apesar de estar no seu próprio sonho, a Carolina não era boa para si, mas era selectiva no sofrimento: cansaço, rigidez, fome, sede e vontade se aliviar vinham à vez, mas não faziam serão. Obrigavam-na a parar e a arranjar maneira de se enfiar dentro da torre para se sentar; conseguia e relaxava os membros, primeiro os braços e depois esticava as pernas para fora da torre. O homem de branco tinha razão, as meias não eram grande ajuda. Tirou-as, enfiou-as nas calças do pijama e continuou para cima, apenas parando para respirar e absorver toda aquela energia solar como um ser de Krypton.
A certa altura, um grupo de nuvens com cara de poucos amigos aproximou-se da torre e choveu-lhe em cima quando estava a sentar-se. Sem abrigo, aceitou aquele dilúvio como se fosse uma Jennifer Beals portuguesa no Flashdance. Estava satisfeita e adormeceu assim.

*

Adormeceu, despertou, mas não sonhou – isso seria demasiado e já gozava em adormecer de cansaço. Estava seca, com as nádegas doridas e a preparar-se para continuar a escalada quando se deteve na enorme manta de retalhos verdes rurais e cinzentos urbanos, com extensões de azul e de outras cores que não conseguia discernir nas alturas. Avistou os primeiros sinais de vida desde que ali chegara: aves que não eram mais do que rabiscos em V que as crianças rabiscavam em folhas de papel A4. Depois daquela contemplação, sentiu-se com uma renovada motivação para continuar a trepar, mas que iria sentir aquilo quando acordasse, iria.
Subia e descansava; subia e descansava. Alongava os braços; sacudia as pernas. A fome e a sede visitavam-na apenas para a lembrar que continuava humana e quando os dedos se ressentiam do metal, enfiava as meias nas mãos e continuava toscamente. Às tantas, apressou-se quando viu mais nuvens a aproximarem-se, mas estas não queriam nada com ela e foram rabiar para outras freguesias. Não demorou até estar mais alta do que as nuvens. E voltou a anoitecer.
“Amanhã vou tão pesquisar isto…” desabafou para a Lua do tamanho de uma bolacha maria.
“O que é que esta torre quer dizer? O que significa isto tudo? Estou a evitar alguma coisa? A fugir de alguém? Quer dizer, algumas coisas são óbvias como esta torre ser do meu passado. E aquele gajo podia ter dado uma luz, porra!” esmurrou um dos degraus brancos com um relâmpago de dor. Encostou a testa ao metal frio da noite e viu que o seu mundo se tinha tapado com um edredão de noite e dormia tranquilo e sonhava com as suas torres. Fez o mesmo, enfiou-se dentro da torre e dormiu sentada até ao primeiro toque do nascer do Sol.

A manhã seguinte encontrou-a num oceano de azul sem nuvens até aos limites da sua vista. À deriva, recuperou o monólogo da noite anterior para o remoer na subida e as palavras cair, largar, soltar, avançar emergiam-lhe do raciocínio. Guardou-as para quando parasse para descansar e fazer algum sentido delas. E quando o fez, fê-lo a olhar para a linha do horizonte, onde a existência separava a terra do céu por linhas pontilhadas. Quando era pequena, julgou ter visto o planeta a mexer, mas agora nem estava longe da verdade – porque quando estava assim quieta e focada parecia ouvir o planeta a preguiçar.

Queda. Lição. Cenas da vida. Outras palavras que os lábios desenhavam em sílabas.
“Basta! Tenho mais do que fazer! Não posso estar aqui sem chegar a algum lado!” bradou aos céus. “Vá, o que querem que deixe para trás? A minha infância? Adolescência? Ou a minha independência? Rotinas, parvoíces? Querem que cresça ou quê? Preciso que me digam alguma coisa!” quase que chorou de raiva, mas mordeu o lábio e aguentou-se. Estava a viver com um homem que amava e o seu cão. Era isso? Mas eu quero isso! Não tenho medo!
“Se for isso e me largar, acordo na minha cama?”
Um silêncio cheio de ansiedade.
“Claro. Vamos a isso, Dido, também posso voar…”
A Carolina crispou as mãos nos degraus, fincou os pés e deixou-se cair para trás, afastando-se da falsa segurança da torre. Contou do dez… e cada número roubava-lhe mais ar do peito, cinco, quatro, três, dois, um. Zero.
Abriu uma mão, mas a outra continuava fechada. Desatou a rir até sentir os abdominais.
“Esta música nem é da Dido! Por isso é que não funcionou.”
Bora! E empurrou-se dos degraus!, mas durou um instante. Depois do swoosh da breve descida, a pancada metálica quando foi de costas contra a torre. A Carolina parecia um insecto virado a adejar as patitas no ar; as pernas estavam entrelaçadas nos degraus que, de alguma forma, encontraram maneira de a trair. Entre o tentar respirar e agarrar-se, foi uma luta de prioridades, mas as mãos não esperaram e encontraram o caminho pernas acima para a puxarem. Desta vez, o choque foi bem maior e demorou até recuperar o ar disparado de um balão rebentado. Quando a visão lhe obedeceu, foi a vez do vómito, mas não tinha nada na barriga.

Ela estava bem, apenas com o orgulho ferido.
“Entendido! Estava errada!”
Curvou-se nos degraus, cabeça pendente para dentro da torre, cabelo a derramar e um suspiro sofrido até as dores sumirem. Aproveitou o momento de paz para aceder aos discos rígidos, tinha de haver algum dilema, algum eureka! Até que chegou lá, não… trilhou a ponta da língua para não o dizer alto e torná-lo real; tinha descoberto o seu próprio segredo – aquela conta da Netflix que ainda partilhava com o último namorado. Pelo menos, acha que foram namorados? Desde sempre que Carolina teve uma paixão assolapada pelo vizinho. Partilharam a mesma escola primária, o mesmo ciclo, mas mudaram de agrupamento no secundário. Separaram-se quando foram para a faculdade, mas houve uma breve bolha temporal que os uniu na mesma cidade, longe de onde cresceram, longe da torre que competiam para subir. E ela não queria pensar mais nisso.
Mais uma vez, a noite apanhou-a. A Lua estava cada vez maior e já não era uma bolacha, mas um valente pacote delas rodeado de migalhas em forma de estrelas. Não consigo… Confessou à Lua e continuou a subir. Os olhos pesavam, mas não precisava deles para subir desde que o resto do corpo lhe obedecesse. A Carolina ia continuar a subir porque sabia que nunca ia cair; ia continuar a subir porque era a única maneira de evitar a verdade: ela estava ali por partilhar a conta da Netflix com um antigo namorado.
“É ridículo! Isto faz zero sentido e nem vejo nada dali!” Pois não, só abria a conta quando lhe picava a saudade e descobria o que andava a ver para depois ver como se estivessem juntos.
“Porque não mudou a passe?!” como se a culpa fosse dele, “porque tenho de estar aqui?”, mas ela sabia.

E subiu mais, sempre a fugir, mas era apanhada em flagrante pelo holofote da Lua. Uma coisa engraçada que aconteceu: a Carolina começou a trautear uma canção de embalar irritante, talvez para se distrair ou talvez pela consciência nos seus calcanhares, e em breve a chegar ao céu, la la, porra!
“Eu dou cabo daquele gajo!” riu exasperada. “Um mundo de canções sobre a lua… e voltei à tua.”
Agora dirigia-se à própria Lua:
“O que achas que deva fazer? Lixo-me para tudo? Saio da conta? Tu até estavas lá, tu viste-nos. Portanto, ajuda-me aqui. Se apagar tudo, apago a última ligação que tenho com ele. Sim, eu sei! Só funcionava para mim, mas isto é importante! Já passámos aquela fase Olá, tudo bem? Sim, e tu? Temos de combinar um café qualquer dia. E eu não quero isso! Quero voltar àquele último verão antes de mudar de casa.
Os nossos pais estavam de férias e ele apareceu com duas pizas do super e uma litrosa. Comemos tudo a papar séries na conta dele. Quando ele se foi, não a desligou, e isso não significa nada? Não, tens razão… Escuta, não aconteceu nada. Só falámos – muito! A minha mão na manga dele, os olhos dele reluzentes de ambições e objectivos e eu a pescar por mais porque não queria que se calasse.

Apareceste, desapareceste e ele também.
Fizemos planos: acabar o curso, arranjar qualquer coisa e partir daí. Adorei-o e odiei-o. Não foi justo!, mas também me odeio. Odeio-me por não ter sido capaz de o chamar de volta ou para ficar comigo. Podia ter trancado a casa, atado os atacadores ou escolhido uma série com imensas temporadas só para vermos mais um episódio, mas foi-se embora e a minha tornou-se numa playlist deprimente de Swell Season.
Apanharam-me, este é o maior segredo que guardo”, mas agora já não falava para a Lua.
“Queres metáforas? Deixaste a tua conta e o meu coração aberto. Nunca saíste daqui e nunca mais soube de ti para além dos filmes, séries e documentários que vias. Aposto que nem os vias sozinho! Que idiota!”… sou…
Ninguém respondeu nem Lua que se recordava desse dia como se recordava de todos os dias da História. Infelizmente, o que mais via eram estórias de amor interrompidas, tantas antes de começarem. Assim era a vida.
“É. Tens razão. É melhor largar e a primeira coisa que vou fazer é desligar tudo… Por mim, por ele, por todos. Não sei como me vai ajudar a dormir melhor, mas é menos uma torre na minha vida. E se um dia nos encontrarmos por aí, talvez aceite o café. Se não, pego nesta memória e guardo-a noutra caixa junto a esta torre. Sim, obrigado.”
Contornou a torre. Sem cerimónias, apenas abriu mão daquilo que melhor guardava. E caiu, mas desta vez ninguém e nada a agarrou, mas não foi uma descida fácil. Embateu várias vezes na construção metálica que ia desmoronando ao seu lado, as estrelas apagavam-se e só a Lua se mantinha intacta para também se recordar do momento. Enrolou-se, abraçou-se. Ela estava bem, ela ia ficar bem.

*

A porta nem bateu com muita força, mas a Carolina despertou de imediato. O Vitorino entrou como um borrão ruivo e lambeu-lhe a mão para dizer olá, vamos brincar. O Tiago apareceu de trela na mão e com a testa luzente.
“Dia…” sorriu. “Acordei-te?”
“Ná. Não posso dormir mais, também.”
“Mas já não dormias assim há muito tempo. Não te quis acordar.”
“Foi uma noite longa…”
“E como te sentes?”
“Olha, parece que fiz um sono completo.”
“Queres ir ao pão?” Convidou-a, mesmo tendo acabado de chegar da rua.
“Bora, dez minutos?”
“Vá” e desapareceu.
Sozinha na cama, puxou do portátil da cabeceira e cumpriu o que havia prometido à Lua: abriu a Netflix, saiu da outra conta, apagou os cookies, passwords guardadas, fechou tudo e voltou a abrir para ter mesmo, mesmo a certeza. O início de sessão estava agora vazio, mas ela não se sentia vazia. Já há muito tempo que não se sentia cheia; cheia de possibilidades e futuros e sonhos.
“Está feito e está” finalizou com um sorriso satisfeito. Atirou os lençóis para baixo e desceu da torre.