Hambúrguer

crop woman frying meat on pan

Há uma memória de uma ex-namorada em particular que me atinge constantemente como um ataque de asma. Quando menos espero, esteja no trabalho ou na rua, fico sem ar. A minha namorada atual diz-me que ainda tenho assuntos pendentes ou que ainda sinto alguma coisa pela outra; que faço demasiado drama. A verdade é que ela não podia estar mais enganada, não sinto absolutamente nada pela miúda. Ela foi-se embora, deixou-me, mas a verdade é que tenho estas crises em que surge a tal memória dela.
Não tenho por hábito vaguear muito pelo passado nem sou uma pessoa sentimental, portanto garanto que esta memória não tem nada a ver com romantismo ou saudade, mas sim com comida, mais precisamente hambúrgueres. Pensando bem, tenho de dar a mão à palmatória porque é estranho: ter ataques por causa de uma memória sobre hambúrgueresmais parece uma desculpa esfarrapada, mas o que posso fazer?
A minha ex-namorada chama-se Marisa e namorávamos há dois anos quando ela se foi embora do país. Pela minha parte, aceitei o fim sem quaisquer objecções. O pior veio depois: comecei a sentir-me vazio, não sentia a sua falta nem nada do género, apenas sentia um vazio dentro de mim como se faltasse alguma coisa. Uma espécie de fome daquelas que uma pessoa sente quando passa imenso tempo sem comer algo de jeito; sentia as paredes do estômago a contraírem-se, doía-me a barriga e tinha uma necessidade de comer hambúrgueres urgentemente.
Quando estava assim, o nariz cheirava o aroma dos hambúrgueres grelhados, as papilas gustativas sentiam o sabor da carne tenra e produziam quantidades massivas de saliva. Parecia um rapaz imberbe com uma erecção espontânea numa sala de aula, mas com o tempo fui disfarçando estes episódios e, quando aconteciam, comia qualquer coisa para matar o bicho.
Expliquei a situação à minha nova namorada, mas acho que ainda não entende e insiste que tenho problemas, que ainda gosto dela ou isso. Por gostar muito dela, procurei ajuda de um psicólogo que não detectou nada e me declarou são e, foi isto, que me deixou ainda mais confuso.
Cheguei a ter discussões e a nova namorada, vamos chamá-la de Cátia, teve ataques de ciúmes, mas como é que podia explicar que não sentia nada pela rapariga que me tinha deixado? Minto, sentia-me roubado. Tinha para mim que quando ela saiu do país, levou algo de mim com ela. Como alguém que corta pequenos pedaços suculentos de um hambúrguer, ela cortou um pedacito de mim. Deve ser esse o vazio que sinto – falta-me um pedacito de carne no ser.

*

Tinha chegado ao fim-de-semana e, o bom das sextas-feiras, é que podia cansar-me um nada mais no trabalho porque sabia que iria descansar no sábado. Foi assim que cheguei a casa: derreado e exaurido mentalmente. Resolvi deitar-me no sofá antes de ir preparar o jantar, mas não fazia a mais pálida ideia do que haveria de cozinhar. Carne, talvez, ou um prato de sopa. Pensei nas minhas refeições anteriores para não repetir, não fazia muito sentido comer a mesma coisa, embora fosse mais económico comer os restos que tinha tirado para descongelar. Sim, ia comer restos. Com esta decisão arrumada, permiti que a minha mente deambulasse para qualquer coisa que não a obrigação de fazer alguma outra coisa.
Descansei dez minutos e a barriga deu horas. O meu Id fez-me pensar naqueles programas de culinária onde as coisas são preparadas em cinco minutos e os pratos são belos de morrer. Os apresentadores, sempre limpos e a sorrir, nunca paravam quietos e sabiam tudo de cor como se tivessem preparado aquela refeição vezes sem conta até à perfeição. Acto contínuo e a memória aproximou-se sorrateiramente: lembrei-me da minha ex-namorada a cozinhar hambúrgueres.
Deixei que a memória se abatesse sobre mim como uma vaga imensa. Quando a onda desapareceu, vi-me na sua cozinha naquele último fim de tarde. Ela estava a tirar tudo o que iria utilizar para fora: a tábua de madeira para cortar e temperar; o grelhador de aço inoxidável; o azeite, sal e um dente de alho e, por fim, tirou uma faca de tamanho médio do suporte. Ela era metódica e não fazia nada fora de ordem, parecia uma cirurgiã prestes a operar num paciente de alto risco.
Arrancou o invólucro de plástico da carne e separou-o pelas várias caixas de reciclagem. Passou os dedos por água e tirou uma pitada de sal que esfregou com o indicador e o polegar para o nevar pela carne como pequenos flocos de neve. A seguir, foi o dente de alho: deitou-o em cima da tábua e esmagou-o com o cabo da faca para o despir da casca mais facilmente, cortou-o em pequenos bocados perfeitos para temperar os hambúrgueres. Espalhou um fio de azeite no grelhador e ligou o bico médio do fogão para aquecer.
Olhámo-nos em silêncio enquanto o azeite começava a estalar. Eu sabia o que lhe ia na cabeça, mas quando o dito tinha atingido a temperatura pretendida, a minha companheira abandonou o olhar e deitou os dois hambúrgueres em cima da chapa quente e untada.
“Falta pouco, queres ir adiantando a salada?”
Obedeci e pousei o telemóvel onde estava a ler uma BD. Enquanto partia as folhas de alface, sentia-lhe os olhos em mim. Só os desviava quando tinha de virar a carne. Depois, usava a ponta de um garfo para espremer cada face e escorrer um molhinho para o grelhador que se misturava com a gordura.
Tudo aquilo só serviu para aumentar a minha fome e excitação. Sentia-me vazio como se não existisse nada em mim, como se o meu corpo se tivesse libertado de tudo para receber aquela carne. Ao mesmo tempo, o meu desejo sexual por ela aumentava. À primeira vista, podia parecer estranho estar a dizer isto durante um acto completamente normal e rotineiro como cozinhar, mas era o que sentia. E ela olhava para mim como que adivinhando, recíproca. Então fazia de propósito para me provocar: a maneira como abria tudo e dispunha na bancada, como deslizava pela cozinha e seguia a sua receita mental – e como tudo eclodia naquele repasto.

A carne ficou pronta. Anunciou-a enquanto colocava os hambúrgueres numa bandeja. Servi a salada na mesa e fui lavar as mãos, depois liguei a televisão e mudei para um canal de música onde passava uma versão de Confortably Numb dos Pink Floyd. Sentei-me à sua frente, ela estendeu o guardanapo branco em cima do seu colo e imitei o gesto, mais por cortesia do que outra coisa. Eu já estava naquela fase confortável da relação em que sentia que me podia sujar sem fazer caso disso, eu sentia-me, mas acho que ela não. Não obstante, lá o fiz e ela sorriu complacentemente. Serviu-me um hambúrguer e outro para si, dividiu a salada em partes iguais e encheu os copos com água do jarro, era da torneira, mas assim as coisas tinham outro requinte. A fome pulsava-me no peito. Começava a acumular-se água na boca e a minha cabeça pensava apenas numa coisa: em devorar.
Cortar a carne em bocados mastigáveis era um suplício, queria levar tudo à boca de uma só vez, mas continuei a seguir as regras de etiqueta. Ela demorava-se com a comida e mastigava com a paciência de um psicólogo em sessão — e eu delirava com aquilo. Empurrava a carne com a água e comia salada para disfarçar, entretanto as músicas iam terminando e começando, sempre diferentes, mas sempre iguais na minha cabeça. Pelos meus ouvidos passava um fio sonoro incessante que bloqueava qualquer ruído externo.
Terminámos quase ao mesmo tempo, bebi o resto da água e ela limpou-se com a ponta do guardanapo branco bem dobrado.
“Estava muito bom” comentei quando ela terminou. Fiz-lhe olhinhos, “como sempre.”
“Obrigado, mas não estava assim nada de especial.”
“Não digas isso. Estava mesmo bom.”

Levantámos a mesa, passámos os pratos por água e pusemo-los na máquina. Sentia-me mais cheio, mas não totalmente, faltava alguma coisa. Olhei para ela a raspar o grelhador com o esfregão com o detergente a escorrer, mordia o lábio e seguia um padrão na lavagem: de uma ponta à outra.
“Já tentei fazer em casa, mas nunca consegui. Como é que fazes?”
“É segredo, ora” troçou. “Mas não te preocupes, sempre que quiseres, eu faço-os para ti. Só tens de pedir.”
“Prometes?”
“Não” riu-se.
Agarrei-a por trás, rodeei-lhe a cintura e beijei-a no pescoço. Sentia-me esfomeado ainda, a carne não tinha sido o suficiente, não aquela carne. Virei-a e olhei-a nos olhos, eram os olhos de uma amante, de uma cozinheira.
Empurrou-me à distância de um braço e pôs-se de joelhos. Lentamente, desapertou-me a braguilha das calças, desapertou o botão e puxou-me as calças. Tocou-me ao de leve nos boxers e sentiu-me erecto. Tirou-o para fora a pulsar, vermelho da tamanha erecção esfomeada. Olhou-o de cima a baixo e passou com a ponta da língua nos lados. Babei-me, sentia o peito a quebrar e o estômago a contrair-se contra as paredes.
Ela abriu a boca como quem leva uma garfada cheia e desceu até à base. Revirei os olhos ao ponto de ficarem presos naquela posição para sempre. Afastou-se, o pénis estava húmido e quente e olhou para mim daquela posição, a picar-me.
“Prometo.” Voltou a pô-lo dentro da boca e fechou os olhos. Bem tentei prender-lhe a cabeça, mas rapidamente me sacudiu. Ela estava em controlo e não aguentei mais: ejaculei dentro dela.

*

Acordei. Tinha as calças húmidas e a almofada também. Já me sentia mais cheio e calmo, mas nunca satisfeito.
Vivia nesta condição degradante; era um licantropo deturpado dos tempos modernos. Em vez de me transformar num lobo possante como aqueles das histórias em busca de virgens, transformava-me numa criatura indefinida, cujo último desejo era comer hambúrgueres caseiros. Era uma condição, uma doença não reconhecida pelo estado, sem apoios e comparticipações que não tinha medicamentos nem ajudas.
Algumas pessoas começaram a afastar-se, poucas ficaram. A minha namorada ficou, mas sentia-lhe a distância e a dificuldade de pôr fim à relação. Eu era egoísta e um pulha, não me importava que acabasse comigo, mas não seria eu a fazê-lo por causa do sexo. Quando tinha estes ataques, estas crises, só havia uma coisa que me saciava: sexo. Ligava-lhe e ela vinha.
Fodia como a besta licantropa que julgava ser. Nunca era o suficiente, no fim, ficávamos calados na cama a olhar para o tecto do quarto. Ela respirava lentamente para abafar um suspiro e eu apenas respirava, fingindo que não reparava. Eu não fumava, mas acendia-lhe um cigarro, acalmava-a este gesto de normalidade e enquanto ela fumava na cama, eu ia cozinhar. Era quase sempre hambúrgueres.
Tirava tudo para cima do balcão e seguia os passos da minha ex-memória. Não falhava nada, achava eu. Por fim, quando havia terminado e a minha companheira já tinha saído, comia sozinho. Comia a seguir as regras de etiquetas impostas por alguém ausente, comia devagar para tentar saborear, mas tentar era a palavra acertada, pois o que comia, não tinha qualquer sabor. Não consigo descrever por palavras, mas a carne que punha na boca não sabia a nada, era como uma folha de papel branca, vazia de desenhos ou letras. Não sei se sabem, mas mastigar folhas de papel vazias é difícil, são duras e podem cortar-nos as gengivas; havia alturas que acabava de comer com cortes fundos na boca e no estômago. E era através desses cortes que as memórias escapavam como bílis.
Vivi assim durante quatro anos, quatro longos anos. Quatro anos a obcecar por hambúrgueres e sexo com um fantasma. Foi uma altura de altos e baixos, foi quando me interessei pelo trabalho de Pavlov e pelas suas experiências de condicionamento e estímulos: eu era a cobaia ideal, não? Sempre que comia um hambúrguer, tinha de ter relações ou vice-versa. Para onde quer que fosse, sempre que fizesse uma coisa, acto contínuo, tinha de fazer a outra. Aos poucos, aceitei e deixei de fazer caso.

*

Depois de mais uma sessão de sexo, há um mês, a minha namorada, finalmente arranjou coragem e confrontou-me. Pediu um tempo para pensar, queria afastar-se, ter a certeza de que me amava e que não tinha nada a ver com o meu problema. Era mentira, claro, mas não a censurava, amava-a e sempre o admiti, mas compreendo que ninguém deveria tolerar as minhas merdas. Beijei-lhe a testa e deixei-a partir. Tentei manter-me afastado dela, mas era impossível. Via-a todos os dias a tomar café, via-a à distância e tinha para mim que estava mais gira, mais graciosa, mais livre. Tinha um aspecto saudável de alguém que não tinha de aturar as psicoses de um louco. Quanto a mim, continuei na mesma, dia sim, dia não, o meu estômago abria as feridas e as memórias tomavam conta de mim.
Dois meses depois de a minha namorada me ter deixado, agora ex-namorada, recebi a visita do carteiro da rua com um pedido de desculpas lamuriante. Acontece que encontraram uma carta minha que estava perdida, imagine-se, atrás um arquivador e só repararam quando tiveram de o afastar por causa de uma infiltração. Com a minha, existiam tantas outras que estavam agora a ser entregues com (bastante) atraso. Era uma carta registada com aviso de recepção. Assinei o despacho do carteiro e levei a carta para dentro.
Virei-a e vi o nome no subscrito: era o dela, da minha outra ex-namorada, da rapariga dos hambúrgueres, a Marisa. Quatro anos e dois meses depois de ela ter partido para o Cú de Judas, tinha recebido uma carta. Era grossa e pesada. Hesitei com ela na mão e cheguei a temer uma crise. Atirei-a para cima do sofá e fui espremer dois limões verdes para dentro de um copo ao qual misturei água. Beberiquei sem acrescentar açúcar, era um hábito meu não pôr açúcar nas coisas. Sentei-me na mesa da cozinha a olhar para a porta da sala, onde via as costas do sofá. Por momentos, julguei tê-la visto sentada, braço direito esticado pelas costas do mesmo e cabeça descaída para o mesmo lado, um gesto habitual dela quando via televisão. Depois queixava-se que lhe doía o pescoço, era sempre assim.
Sentia-me calmo e sem sinais de crise, mas mesmo assim decidi prevenir-me. Bebi o resto da limonada e tirei os utensílios de cozinha para fora. Ainda tinha um hambúrguer – tinha o congelador sempre cheio de hambúrgueres. Fui à sala buscar a carta e trouxe-a para a cozinha. Ao carregá-la, pareceu-me que estava ainda mais pesada. Rasguei o envelope manchado e tirei o papel para fora. Era um papel típico de carta, liso, mas escrito com linhas perfeitas sempre direitas. Estava dobrado em três partes, estiquei-o e alisei-o sobre a mesa e li-o de fio a pavio; a carta datava de há quatro anos…

“Querido Mário,

Não sei como é que esta carta te vai encontrar, mas espero que estejas bem. Espero também que os correios sejam breves a entregar-te isto porque odeio deixar assuntos pendentes por medo de os deixar queimar ao lume. Ah!

Desculpa, é óbvio que passado um mês, as coisas não estejam bem, mas é algo que se tem de dizer, apesar de não ser o mais correcto para a nossa situação. Eu parti para o outro lado do mundo e deixei-te aí, mas quero que entendas que teve mesmo de ser! Éramos e somos novos, não podia passar esta oportunidade de trabalho, assim como tu não deixarias se fosse contigo OU iria ficar bem lixada contigo. Mas não sei, foi tudo demasiado rápido, rápido e simples demais. Tu aceitaste com uma tamanha facilidade que me assustou. Parecia que já não gostavas mais de mim e que esta era uma oportunidade para acabares comigo. Desculpa se estou a fazer filmes, mas foi o que deu a parecer.

Quero que saibas que a promessa que te fiz, quando a fiz era para durar pois não fazia ideia de que isto iria acontecer. Não sou de quebrar promessas, tu sabes disso, não? Mas quando a fiz, julgava que ia estar contigo durante muito mais tempo e afinal, um mês depois, aqui estou eu e aí estás tu. E quero que saibas que desde que aqui estou, que ainda não cozinhei hambúrgueres e tão cedo não os quero fazer. Chama-me lamechas, mas trazem-me memórias tuas. Quando olho para a carne, esta parece viva e transforma-se numa figura com a tua cara. É estranho, eu sei! Mas é o que acontece e então fico a ver essa coisa com a tua cara ali à minha frente na cozinha tal como tu o fazias a olhar para mim. Olha-me em silêncio, escolhe músicas ou lê no telemóvel. Mas não fala, se ao menos pudesse ouvir a tua voz…
Enfim, estou a parecer paranoica. Compreendo, sempre foste mais racional do que eu nestas coisas, sempre mais real e nunca pensaste muito nisto, mas pronto, desculpa.

Desculpa também pelo que te vou pedir, mas não me leves a mal, mas achas que posso quebrar esta promessa, quebrar talvez não, interromper por momentos? Eu vou estar aqui uns seis meses ou um ano e gostava de poder cozinhar normalmente. Tenho colegas de casa e seria estranho que vissem um monte de carne com a tua cara na cozinha. Agora ri-me com a expressão deles, mas não te importas? Quando voltar, quando nos virmos, se fizermos sentido juntos, então volto a cozinhar para ti.

Se achares que isto tudo é uma merda sem sentido, rasga a carta e deita-a fora, mas não faças pouco de mim, custou-me imenso escrever isto, tenta compreender o meu lado, okay?
Não me vou alongar muito, espero que estejas mesmo bem. Espero ver-te bem e espero, também, que não te tenhas esquecido de como se fazem os meus hambúrgueres, não é nada de especial, já te disse. Agora, como te livrei desta promessa, até podes pedir a alguém, desde que não seja a uma miúda ou temos problemas. Estou a brincar, obviamente…!

Bem, termino por aqui, vou agora pôr a carta nos correios à chuva. Deseja-me sorte.

Beijos, sempre tua.

Marisa.

P.S.: Escreve-me, sim? Quero saber de ti, mesmo que estejas chateado comigo. Se ainda estiveres vivo (ou se tiveres mãos para escrever), manda uma carta na volta nem que seja para me mandares passear.
Boa sorte, senhor cozinheiro. Que a sabedoria dos hambúrgueres congelados esteja contigo.

*

Reli a carta, fiz mais limonada. Bebi devagar, a minha cara com espasmos involuntários da acidez do citrino e dei por mim a lê-la por uma terceira vez. Era outro gesto involuntário. A carta estava mais leve, sentia-o. A cozinha tinha um cheiro a limão misturado com ironia, mas também esse desapareceu com as horas. Quatro anos é pouco tempo se formos uma tartaruga, mas por mais lentos que sejamos, somos pessoas e quatro anos é muito tempo, porra! Quatro anos, quem diria… Dobrei a carta e guardei-a dentro do envelope. Bebi o resto da limonada ácida de um só gole, arfei e contorci-me todo para exorcizar o demónio de qualquer coisa.
Reparei que os utensílios ainda estavam todos em cima do balcão da cozinha, e durante a hora seguinte, dediquei-me à missão de cozinhar hambúrgueres quatro anos depois. Quando terminei, sentei-me à mesa e parecia ouvir um rufar de um tambor, mas quando pus a primeira garfada na boca nada aconteceu. O hambúrguer sabia a hambúrguer com alho e azeite. Talvez esperasse alguma revelação ou revolução dos sentidos, mas não aconteceu rigorosamente nada. Comi o resto do hambúrguer e lavei a louça sem sentir qualquer desejo. A única coisa que sentia era a barriga cheia e satisfeita. Sentei-me a ver televisão como fazia todas as noites, mudei de canal como sempre e apaguei-a para não variar.
Levantei-me e fui buscar o telefone para a cozinha. Agora, tinha duas alternativas: ligar à Marisa. Saber se ainda vivia, se estava por cá, meter a conversa em dia e rir da carta demorada. Ou ligar à minha ex-namorada. Ambas pessoas do meu passado, mas ambas igualmente importantes. Uma havia sido a minha carcereira e a outra, o meu álibi. Podia nem ligar, mas tinha de falar com alguém. Falar com alguém e não fazer sexo! Marquei um número no telefone e liguei para a Cátia que, por sorte, atendeu.
“Estou, Cátia. Não desligues sem me ouvires primeiro. Há duas coisas que te quero dizer: uma é que te amo muito, que sinto a tua falta e que nunca te esqueci. A outra, é que estou curado.”
“Foram mais do que duas coisas.”
“Eu sei” deixei escapar um riso e pareceu que ela fez o mesmo.
“Também tive saudades tuas, por incrível que pareça… O que queres dizer com estares curado?”
“Não sei, acho que irei descobrir com o tempo, mas sei que durante muito tempo, não quero ver hambúrgueres à minha frente.”
“És uma pessoa muito estranha, Mário, mas passa por aqui, estou a comer salada russa. Gostas?”
“Não sei, acho que nunca provei.”
“Vai ser a tua primeira vez.”

Desligou o telefone, vesti o meu casaco e verifiquei os bolsos antes de sair: tinha tudo. A carta ainda estava no mesmo sítio onde a havia deixado, peguei nela, podia tê-la posto no lixo, mas seria má educação e a letra era demasiado bonita para tal. Decidi guardá-la dentro de um livro que ela me havia oferecido no meu aniversário –um livro de culinária.
Saí para a rua, estava muito frio e havia algum vento, mas não era muito forte para que tivesse de ir de carro. Caminhei até à sua casa sempre com uma coisa em mente: a que saberia uma salada russa?