Até breve

stainless steel cover of drain in modern shower

Tenho de admitir, escrevi a primeira versão deste conto ao som da Touch, de Daft Punk

O teu cabelo azul boreal…

Todos temos uma rotina – um programa. Escrevemos o código, clicamos aqui, premimos ali, e rezamos para que corra (bem). E uma rotina é isso: um programa que está sempre a correr até àquele momento ou falha embaraçosa, como quando esbarramos contra uma árvore e continuamos a andar até que alguém se desvie. E não será a árvore, pois não? Mas tudo pode mudar num estalar de dedos…

*

Em dias alternados, continuava a abrir a mesma porta da casa de banho, entrava e fechava-a atrás de si com aquele clanque de maçaneta velha. A mão direita para trás, a acompanhar o regresso da maçaneta à posição de origem – havia aquele receio de se ter esquecido de alguma coisa e ter de sair a correr. Nunca aconteceu. O cérebro enviava os sinais e a mão abria-se: um dedo de cada vez até largarem a maçaneta. Depois, calhava ficar a observar as marcas na palma a desaparecerem até estar novamente completa. A porta estava mesmo fechada.
Abria as torneiras da banheira matematicamente: a da água quente até ao máximo; a da água fria apenas um quarto. Engasgavam-se e tossiam até escutar o murmúrio da água a correr pela canalização antiga que espirrava e caía com a força desmesurada de uma cascata na superfície fria e dura da cerâmica, salpicando a toalha dos pés, ainda pendurada. A casa de banho aquecia…
Havia um espelho com rebordo rosa na parede, mesmo ao lado da banheira, que ignorava enquanto se despia. E começava a puxar pelo fundo da camisola sintética com as duas mãos que acontecia prender-se às orelhas e cobrir-lhe a cara para ficar sem ver nada numa escuridão de segundos. Puxava mais um pouco e esticava-se contra a camisola, forçando os detalhes da cara a emergir do tecido; os contornos da carne tenra e das próteses grosseiras. As calças do pijama seriam as próximas, soltava o cordão e caíam pernas abaixo numa tosca cacofonia de fricção metaliforme. Uma perna; a outra perna. Ainda enrodilhadas aos pés, estendiam-se para longe da sua pessoa, uma sombra das noites anteriores. Sacudia-as contra a parede. Tirava os boxers e deixava-os deslizar para o monte das calças. Noutros dias, raros, lutava uma luta renhida contra a roupa, mas saía sempre por cima. E esta tombava pelos mosaicos que ainda vinham de origem com a casa. Por fim, nu.

Com a água ainda a cair e o vapor a preencher o silêncio da casa de banho, procedia a recolher toda a roupa para a dobrar programaticamente. Em primeiro, as calças que seriam deitadas em cima do tampo da sanita e a camisola sobre as calças. Tudo muito direitinho, tudo pronto para logo. Só a roupa interior continuava no chão. Para alguém de fora, tudo aquilo lhe iria parecer bizarro, rígido ou, talvez, um nada autista. Mas havia uma boa razão para aquilo tudo: ele tinha de o fazer e não conseguia ser diferente. Não era normal-normal, era o seu normal. Havia todo um programa e cálculos de OCD a correrem internamente – no entanto, nada disto seria importante no pequeno esquema das coisas: a roupa iria toda para lavar. A roupa acabava por seguir para o caos da máquina, programa 2, 30 °C com detergente de marca branca e meio copo de amaciador, igualmente de marca branca, tudo se iria misturar: roupa interior, roupa normal — a ordem deixaria de existir para dar lugar a uma revolução de 90 minutos.
Estava no programa das revoluções acabar com o sujo para dar lugar ao limpo. E seria durante essa revolução que os opostos, os normais, anormais e paranormais da sociedade se juntavam, mas nunca por iniciativa própria, alguém tinha de os empurrar, juntar e misturar as quantidades certas de detergente para que algo acontecesse. O antes e o depois não costumavam conviver, cada uma das partes cumpria a sua (dis)função em separado e cada peça vestia o seu membro. Ainda estamos a falar de roupa, mas para ele era muito mais – pensava numa sociedade a que outrora pertencera, mas que depois do acidente se tinha tornado estranha para com ele. E ele não conseguia lutar contra a sua programação de o ostracizar. Ele era agora uma aberração com gestos e condutas que não faziam sentido a mais ninguém. Ele continuava aqui, e ela havia desaparecido…

*

Antes de entrar para o banho, encarava o tal espelho já embaciado, onde enfrentava uma presença desfocada. Havia vislumbres de traços familiares, a maioria no lado esquerdo, o resto… o resto era outra coisa que não queria distinguir, não lhe pertencia, mas tinha-lhe sido imposto para “o salvar” mas deram o seu melhor; fizeram o possível; e o impossível!, mas tornaram-no numa coisa mais próxima de um frigorífico do que de uma pessoa. Nesse instante, degolava o reflexo embaciado que lhe devolvia o olhar. Noutras vezes, arriscava tocar-se. Começava pelo lado esquerdo, mas ao contrário das pessoas ditas normais e que se admiravam ao espelho, não procurava borbulhas, rugas, cabelos brancos. Tacteava, apalpava-se, acariciava-se, entre outros sinónimos. De quando a quando, ainda se beliscava, puxava a bochecha num sorriso tosco, punha a língua de fora para fazer uma careta. Nada: um total de zero reacções. Achava sentir a barba a crescer, aquela sensação agridoce dos pêlos a perfurar a epiderme acompanhada de memórias de manhãs sonolentas de lâmina na mão. Preferia não ter de a fazer, mas era sinal de que tinha acordado para um novo dia e sobrevivido à noite. Além de que ficava mesmo giro com ela aparadinha, a arranhar, ou assim mesmo grande, como dizia a voz da miúda de cabelos azuis. Alguém cujas memórias custavam cada vez mais a chegar até si, em ficheiros de áudio gastos e corrompidos e imagens adulteradas que se repetiam e substituíam as originais – não mexas mais, e mordia-lhe a barba áspera que espetava do queixo. Sentia-a, sentindo-se.
O olho castanho devolvia-lhe um olhar concentrado com sobrancelhas e pestanas certas. A boca até que podia esboçar um sorriso, mas o lado direito e a vontade não o permitiam. O outro olho de aspecto virulento, em oposição ao plácido olho castanho, era branco com rasgos vermelhos das veias raiadas. Sintético e defeituoso, um implante de segunda categoria, um subsídio por não ter posses para mais. As ligações deixavam de fazer contacto com os nervos, resultando em movimentos involuntários do olho e perda de visão, mas isso não era o pior, o pior era quando mantinha a visão durante esses momentos espasmódicos… A incapacidade de se fixar ou agarrar-se a algo dava-lhe umas enxaquecas que rachavam a cabeça a meio com relâmpagos de branco e vermelho. A realidade curvava-se, as distâncias distorciam-se – estrabismo glorificado. Por várias vezes tinha pensado em cegá-lo definitivamente, poupando-o àquele sofrimento de olhar para todo o lado e não ver nada. Ou podia usar uma pala, sim, isso dar-lhe-ia estilo. No entanto, a vida caseira trazia outras vantagens como a reclusão e quando andasse na rua, o olho sempre poderia assustar as criancinhas curiosas e maldosas.
Num bom dia, perdia a visão. Hoje era um bom dia. Mas sentir-se assim, daquela maneira desumana como se a vista estivesse possuída, deixava-o alheio de tudo. Não ficava triste; não ficava zangado, apenas ausente como aquele olho. E como quem tranquiliza um bebé com sono ou com fome ou com qualquer outra coisa, vá-se lá saber, levava a mão esquerda até lá para o cobrir numa sensação de paz cega momentânea. Fechava a pálpebra e, em contacto com a palma morna, o olho acalmava. Com o indicador na condensação, desenhava uma cara sorridente sobre a sua: um sorriso bem rasgado e dois olhos grandes. Nenhum deles com vida própria.

*

Em frente à banheira, flectia uma perna sobre a berma e pousava-a na superfície escorregadia. Repetia o gesto para a outra e enfiava-se lá dentro, fechando a cortina rosa com flores gastas. O ralo aberto impedia que a banheira enchesse e enchesse até cima; a água apenas lhe chegava aos pés e salpicava-o para desaparecer logo de seguida pela escuridão do pequeno orifício. Sabia que a água estava quente, não porque a sua derme o indicava, mas pelo vapor que o rodeava. Partes de si tinham recebido enxertos de pele sintética também de qualidade duvidosa que, no geral, cumpriam o seu dever ao protegê-lo dos elementos. Contudo, deixara de ter qualquer sensibilidade corporal. Não sentia dor, arrepios de frio, pele de galinha ou calor. Tudo lhe era indiferente. Algumas pessoas viam isto como uma oportunidade quase imortal de viver, mas para ele era um purgatório não poder sentir a água quente, a chuva, os encontrões com outras pessoas nos transportes e o corpo nu da rapariga de cabelos azuis contra o seu – um beijo durante uma tórrida sessão de amor e a língua a passear-se pelas formas.
A água lavava essas memórias.

Desviava a força para o chuveiro e pendurava-o no suporte da parede. Quedava-se assim, imóvel, enquanto a água caía agora sobre ele. Flácido e completamente encharcado, encostava a cabeça aos azulejos aquecidos e fechava os olhos. Isolava-se numa escuridão sua e lá voltavam as imagens – fotografias dele; dela; deles de outros tempos. Surgiam numa sequência que acelerava até deixarem de ser apenas fotografias para passarem a ser curtas-metragens. E filmes exibidos num ecrã mental, numa sala escura do subconsciente. Silêncio. A rapariga mexia-se e voltava à vida. Depois, o áudio com chuva, a estalar, e os gemidos ronronados.
“Fode-me…” gemia a rapariga de cabelos azuis pequena para a sua idade, peito ainda coberto contra a colcha estendida de lavado. Ouvia-a, sentia-a pelo fôlego quente e apressado. E obedecia. As mãos dele desciam pelos braços e mãos dela; os lábios beijavam-lhe a pele exposta até se cercarem pelas pernas. Sorriam e a imagem dela desfocava. Era agora outra rapariga – não, a mesma! Era uma e várias; várias caras e cabelos de cores variadas, vozes e toques. Chegavam até ele nuas ou ainda vestidas, mas de onde vinham? E o cenário era o mesmo. As vontades? Idem. As mãos afundavam-se nos corpos e os corpos contorciam-se como cobras e os sibilos não eram mais do que a estática que não deixava reconhecer as vozes. E ele empurrava para baixo e era empurrado para ainda mais baixo. De dominador a dominado e todas eram livres de se irem embora. E foram. Menos a rapariga de cabelos azuis que se aninhava agora nele, quente, mas a tremer. E ele cobria-a. Há quanto tempo fora aquilo? O espaço e o tempo dobravam-se como uma folha de papel para ele rasgar tudo.
Ainda com cabeça na parede molhada, levava uma mão à testa para servir-se do encosto. Descia a mão livre até ao pénis. A parede recebia os gemidos — um pedido de autorização para avançar. Estremecia, cerrava o olho bom com força e retomava o filme.
“Fode-me…” ecoava na casa de banho. E vinha-se.

*

Ficheiro corrompido…

Estremecia. Bloqueava. Silêncio. Escuridão. O cessar-fogo de um respirar. A água que continuava a escorrer. O coração que parava de bombear sangue para os órgãos; o oxigénio que deixava de chegar ao cérebro; as sinapses que iam interrompendo. A fábrica humana desligava as máquinas para o dia. Espiritualmente: uma morte. Biologicamente: um orgasmo. E a água que continuava a fugir pelo ralo.
Durava segundos. Depois, como se batesse as sete horas da manhã, a fábrica voltava à vida. Primeiro, o quadro eléctrico com o ronronar das máquinas a arrancar, a vibração, o calor e a harmonia de mais um dia. Um segundo. Diástole, sístole, diástole, sístole e o coração bombeava o sangue com a força de uma barragem a abrir. Os pulmões sequiosos devolviam o fôlego à pessoa. As extremidades acordavam do formigueiro à medida que o cérebro recebia uma sobredosagem sanguínea que iluminava os neurónios como um cartaz de uma loja de usados. Todos pegavam ao trabalho de onde o tinham deixado. Os implantes e os órgãos artificiais completavam a reinicialização com uma latência de milésimos de segundo para começarem a carregar os seus programas.

Por um segundo, ele chegava a sentir. E urrava. Os nervos sensíveis recebiam as gotas de água como lâminas que lhe rasgavam a pele. E a temperatura era vulcânica! Queria esfolar-se pelos enxertos; puxar das vísceras intrusas e furar aquela merda de olho que lhe roçava no crânio. A corrente envolvia-o num aperto tentacular que o puxava para o fundo do ralo. As luzes intermitentes daquela fábrica meio humana espalhavam o pânico nevrálgico e ele continuava a berrar. Ao segundo número dois, voltava a deixar de sentir, mas sofria como um amputado que insistia em esfregar uma perna fantasma. Ao segundo número três, o grito era uma reverberação mental embaraçosa.
E ficava assim, a segurar um órgão sexual bastante humano sem erecção, um saco de pele gorda e amorfa a pender por entre os dedos, a gotejar um líquido sem viscosidade que se ia misturando com a água do duche. Sorvia a água que continuava a escorrer-lhe pela testa. Era indiferente se estava quente ou fria, já não sentia; já não conseguia voltar àqueles segundos. Estava novamente sozinho na sua casa de banho.

*

Passava com o chuveiro pela banheira, pela cortina e pelas torneiras. Esfregava mesmo com as mãos para limpar e não deixar vestígios. Acabava de se lavar e abandonava. Havia terminado um ritual que decorria sempre da mesma forma, sempre no mesmo lugar, sempre com a mesma pessoa, com a mesma voz, com os mesmos gestos e com as mesmas sensações para acabar sempre da mesma maneira triste. Usava e abusava daquela última memória. Invadia qualquer privacidade e respeito. Abusava de uma saudade e inocência. Um pulha que não a merecia. Sentia-se nojento e tão arrependido. Jurava para nunca mais e pedia tantas desculpas. Tentava pensar noutras coisas para se distrair e sacudia a cabeça para encerrar os ficheiros das memórias corrompidas.
Saía do duche escondido pelo vapor, pegava na roupa bem dobrada e nos boxers e misturava tudo no cesto da roupa suja. Mas era triste… um gesto, uma actividade tão normal e até saudável, ser a única forma para ele reter alguma da sua humanidade e extrair memórias – para a ver. Para se ver. Para se verem.