Havia vários bancos de pedra encostados à parede do cemitério. Rijos, frios e húmidos, mas até confortáveis para quem lá passava para tratar das últimas moradas dos seus entes ou para quem passava o dia a trabalhar dentro daqueles muros altos. Por vezes, também merendavam aí e nem a morte vizinha roubava o apetite ou o sabor às coisas – parecia que até sabiam melhor. Ainda assim, os bancos do cemitério não eram pontos de passagem famosos ou procurados pelos cansados. Muitas das vezes, era a criançada de negro que roubava a maquilhagem dos pais, ouvia música triste e recitava poesia com sentimentos obscuros que ia para lá passar as horas depois das aulas ou fotografarem-se com os que já não podiam recusar até serem corridos pelos homens de sachola com mais do que fazer do que aturar maluquinhos. Depois, o pároco novato que ia ensaiar missas à sombra.
Amaldiçoados pela solidão, eram assentos tristes para pessoas tristes que se sentavam e choravam ou suspiravam ou esperavam ver aparições. Mas nessa tarde, havia um casal sentado num dos bancos, com as caras coladinhas e a trocarem carícias. Era uma coisa linda de se ver. A moça tinha o cabelo colorido de encarnado apanhado por uma fita preta, vestia um vestido simples da mesma cor, uns converse gastos e rotos e não se viam meias. O rapaz era careca e distinguia-se da casualidade da parceira pelas roupas sóbrias, calças lisas do ferro, camisa metida para dentro, sapatos impecáveis e a brilharem da graxa.
*
Este esticou três dedos da sua mão direita, “Um, dois, três” e deixou-os ao nível da cara da Magda.
“Três, a conta que Deus fez?” sorriu.
A Magda observou-os com atenção e contou-os para si para se certificar de que ele não se tinha enganado. O Ricardo não era um ás a Matemática, mas lá estavam eles: três. Depois contou os outros dois, um polegar sobre um mindinho como se o protegesse ou o mantivesse submisso. Devolveu a atenção para os que apontavam o céu até deixar de os ver nitidamente para se focar na cara do rapaz como uma lente fotográfica a saltar entre planos. Os três dedos borravam e desapareciam e a cara ganhava cada vez mais detalhes. E era linda, imperfeita, mas muito dele. E um pouco sua também.
Registou aquela fotografia no momento sem quaisquer photoshopes e guardou-a para si sem lhe dizer nada. E isso picava o discreto Ricardo que não era fã de fotografias nem que manipulassem as suas. Era da opinião que as pessoas são como são e ao serem alteradas e embonecadas era como se estivessem a passar corrector e a escrever por cima de um livro. Mas a Magda sabia o que fazia, afinal ela tinha sido a fotógrafa da relação e não deixava nada para trás, desde a flor mais pequena ao evento mais grandioso. E agora que o Ricardo pensava nisso, havia muitas poucas fotografias dela…
*
Ela olhava agora para o castanho da sua barba aparada que cercava um sorriso ansioso. Certo, tinha algumas falhas, mas nada de grave. Mais do que acariciá-la, a Magda gostava de passar os dedos por onde não brotava nada. Encontrava a perfeição na imperfeição, mesmo fazendo vida a aperfeiçoar o mundo. Tocava, puxava, beijava e passava a palma suavemente. Encostava-se para sentir a dureza da carícia e beijava cada face. Já ele entretinha-se com os cabelos coloridos da rapariga que insistiam em mudar de cor com a direcção do vento, os seus dedos perdiam-se entre as mechas de cabelo e quando adormeciam assim, tudo estava bem no mundo. Eram um casal com uma peculiar, se bem que carinhosa, fixação capilar. Baixou a mão do namorado e encostou-se à sua cara de olhos cerrados. A sensação era quase como acampar e dormir com uma raiz nas costas, mas com um infinito de estrelas e universo por cima. Não havia uma metáfora melhor.
“Três” repetiu meio para ninguém.
Enquanto permaneciam em silêncio, havia ali uma inquietação, uma necessidade de conversa quando não deveria haver problema naquele silêncio. O Ricardo recuou e recuperou as mãos para si, esfregou e coçou as palmas e as costas e os pulsos num gesto familiar de ânsia. Voltou a escolher três dedos: o indicador, o médio e o anelar.
“Três formas de ver a vida” começou meio à filósofo antigo sem desviar o olhar dela que aguardava com uma expressão de papel em branco. “Isto é só meu, não tomes como verdade verdadinha.”
“OK”, respondeu curta para não desperdiçar palavras. Agora era a vez da Magda brincar com os dedos, empurrando a pele até às unhas e sentindo os pequenos sulcos que faziam das suas mãos suas.
“OK, então…” e lá foi ele: “estás a ver o plano real, certo? Um. E temos os outros dois” pausou por instantes para buscar inspiração do céu nublado que acinzentava um Outono. Finalmente, o tempo já arrefecia e as folhas largavam os verdes para preencherem o caminho junto aos bancos de tons melancólicos. Com a mudança, o mundo ganhava os sons de pequenas e imensas folhas a estalar como chamas invisíveis que crepitavam sob as passadas.
Ao mesmo tempo, um grupo amontoava-se à porta da igreja ao fundo do caminho de folhas. Todos eles, incluindo o casal, ignoravam as nuvens pachorrentas que não iriam tardar chover. Se pareceu uma eternidade, foram apenas uns segundos de reflexão e antes de retomar o ditado, observou o grupo e a vida à sua volta para ter a certeza de que não estava a ser observado. Passou uma velhota acelerada com o telemóvel em alta voz e a falar ainda mais alto para ser ouvida no outro lado. Logo atrás, dois senhores caminhavam lado a lado em silêncio, um carregava o jornal regional debaixo do braço e o outro olhava para as árvores como se procurasse o seu por ali. Uma bolita veio a saltar até aterrar nas folhas e um cão veio logo recuperá-la.
“Então, e os outros?” pressionou a Magda curiosa.
“Desculpa! Perdi-me. Bem, os outros planos são este e aquele” respondeu a gozar. “O da esquerda e o da direita, o do certo e do errado” continuou numa mímica para separar as diferenças.
“Acreditas em vários universos?” Perguntou à companheira.
“Hum…” Parou. “Acho que sim? Outras dimensões com outras Magdas e Ricardos?”
“Pode ser!” exclamou. “Penso mais nisso quando me vejo ao espelho. Nunca tiveste curiosidade em passar para o lado de lá?”
“E se for pior do que este lado?”
“E se for melhor? Se, se, se…” troçou.
Os lábios da Magda ainda se separaram para refutar, mas rapidamente se fecharam num sorriso que o Ricardo aceitou como vitória.
“Dizia que tinha três maneiras de ver a vida” voltou a pegar no início da conversa e arrumou os espelhos, mas continuou com eles na cabeça.
“Dizias, já não dizes?”
“Porra…” ambos riram e ele tomou-lhe a mão, “esquece a parte dos diferentes universos por agora.”
Sentiu-a fria, mas controlada. Envolveu-a como uma ostra para a proteger como a sua pérola.
“Desculpa…”
“Não…” ela sorriu. Um pouco hesitante, mas sorriu.
“Estou a dar-te a mão neste plano e sabe bem” sorriram, “mas no segundo, e se as nossas mãos forem serpentes entrelaçadas? Barulhentas e violentas a tentarem escapar do seu próprio veneno?, mas a esganarem-se num pânico?” Durante a metáfora nem olhou para ela por temer um qualquer olhar reprovador. Ou que se afastasse, mas a namorada continuou ali.
“Esse é um plano mau” a Magda anuiu. “O terceiro? Vejo as nossas mãozinhas como raízes de árvores velhas que cresceram à distância e que com a passagem do tempo se foram inclinando na direcção certa até ficarmos bem juntinhos. E assim, felizes para sempre.”
A reação da Magda ainda foi a mesma. Também não teceu comentários e absorvia tudo como se estivesse numa aula.
“E este é o lado bom” o Ricardo concluiu, mas desta vez ela tinha algo a dizer.
“Estás a dizer que este não é bom?”
A resposta veio em forma de um beijo e de outro.
*
Passaram dois ciclistas a abrir que meteram as folhas num rebuliço. Outras três senhoras passaram a puxar carros de compras e uma criança seguia-as entretida com o seu pacote de batatas fritas. O grupo continuava à sombra da igreja e o cão ainda ali com a sua bola atirada por alguém que não viam. Aproximou-se do casal com a caudita sacudida e farejou o ar, mas afastou-se a correr quando ouviu um assobio. O Ricardo não quis recuperar o momento que o cão interrompera. Dentro dele, ainda soprava o tornado que as bicicletas tinham começado, porque disse isto?, mordeu-se.
Pegou no esqueleto de uma folha e desfê-lo em migalhinhas. A Magda pigarreou por ser a vez dela:
“Obrigado por teres partilhado, sério.”
“Disse asneiras?”
“Ná” tranquilizou-o. “Mas fizeste-me lembrar de uma coisa.”
A Magda segurou-o pelo queixo morno e virou-o para si e para continuar o teatro, meteu a mesma cara que ele tinha quando começou a sua lição. Ambos riram, mas ela conseguiu manter a compostura para começar.
“Sempre que olho para ti é como se estivesse a olhar para dentro de um espelho alto. Vejo-me a mim, mas também te vejo a ti. Não há serpentes ou raízes de árvores – apenas nós. E por mais que tente chamar ou passar, sou barrada por um véu frio. O que não faz sentido porque devia dar para partir e atravessar, mas por mais que tente, nada…
“E eu?”
“Não podes fazer nada. Não podes vir atrás de mim. Estás feliz com o meu reflexo e com as nossas memórias. Sinto um fiozinho de ciúmes por estares com outra Magda que não eu, mas é a única coisa que podemos fazer agora.”
“Magda…”
“Não.”
“Quem me dera ouvir-te. Diz-me e sigo-te…”
“É que nem pensar. Já basta uma pessoa.”
“Mas estás aí sozinha e não é justo.”
“Oh, não estou tão sozinha. Há mais gente aqui e eu gosto de te ver. Pelo menos, enquanto te vejo feliz comigo. Quer dizer que fomos mesmo felizes, não é?”
“Fomos, sim” endireitou-se ao nível dos seus olhos que reflectiam todo um universo de infinitos ses. “Estes dias sem ti têm sido tramados. Parece que caminho pela água até perder o pé, mas não consigo parar e todos os peixes querem roubar um pedaço das nossas memórias. E eu ou nado ou tento pará-los.”
“O mar é um outro mundo” concordou a rapariga.
“É quase outro espelho.”
“Só quando está límpido.”
“Um espelho sujo não nos serve para nada. Vá lá, deixa-me ir contigo.”
“Nope. Ainda não!” fingiu uma expressão de aborrecida.
Nisto, o vento ia subindo de tom. Alguém se afastava do grupo à porta da igreja e caminhava em direcção ao banco. Vozes de negro crocitavam as suas conversas enquanto dispersavam. Até que pingou por entre os ramos despidos.
“Anda aqui, já!” Ouviu-se alguém a berrar pelo cão que continuava tolo na brincadeira. Antes de obedecer, voltou a atenção para o banco onde estavam agora dois homens, um sentado e outro em pé. À chuva que começava a pesar, o grupo era cada vez menos um grupo e apenas poucos resistiam à espera. As folhas caídas navegavam em poças no chão irregular que o vento se encarregava de virar e afundar. Aos pés do Ricardo, a poça reflectia-o de baixo para cima e ao companheiro que tinha chegado para o levar. Não disseram nada, mas não seria preciso. Ele sabia que estava na hora de sair dali. Aquelas conversas, teorias e pensamentos seriam levados e virados pelo vento ou comidos por peixes imaginários.
*
O coveiro que havia trocado a sachola por um impermeável fora o último a sair. Mais um dia de trabalho. Fechou o portão e espreitou para os bancos para espiar a criançada, mas estavam vazíssimos à chuva. Óptimo!, e correu dali para fora. Agora, se tivesse prestado atenção e arriscado a carga de água, talvez tivesse topado uma poça. E nessa poça, o reflexo de um outro banco de pedra, junto a um outro muro alto. E uma rapariga de cabelo colorido apanhado por uma fita preta, também vestia um vestido simples da mesma cor, uns converse gastos e rotos e nem se viam meias. Estava deitada sobre o banco de pedra com um sorriso tolo, mas também saudoso. Em que estaria a pensar? Ninguém poderia dizer, mas talvez em mãos enraizadas e num casal perdido e achado num tempo qualquer, mas para sempre juntos num universo de infinitos ses.