Somos um Cigarro
Por André Soares Pereira
Uma noite de quarto-crescente. Uma noite quase normal, portanto. E nessa noite de normalidades, duas pessoas refugiavam-se na luz de um candeeiro de rua, o único que teimava em funcionar. A luz não atraía só aquelas duas pessoas, mas também as traças que esvoaçavam à volta daquela estrela artificial. Uma e outra vez, podiam ouvir as pancadas tontas dos bichos encadeados contra o vidro.
“Acho que temos de deixar de falar” continuou a rapariga.
“Achas?” responde a voz de um rapaz.
“Sim. Acho que estamos a confundir as coisas e eu não quero isso.”
“Eu não estou a confundir nada. Sei quem sou e o que estou a fazer.”
“Pronto… Eu estou a confundir as coisas ou a começar a…”
“Continua…”
“Quando comecei a falar contigo, era só como amiga e depois a coisa evoluiu e comecei a ver-te como outra pessoa. Mais do que amigo, entendes?”
“Creio que sim, mas vou dizer que não…”
“O que quero dizer é que começo a esperar coisas de ti. Coisas diferentes; reacções a acções; respostas a perguntas e comportamentos a estímulos, mas não como amigo. E não pode ser assim, não mereço ficar desiludida de novo nem tu mereces que eu exija tal de ti.”
“Okay… Mas tens de dar uma razão a tudo? Arranjar uma explicação para essas coisas?”
“Sim, acho que sim. Tenho de estar segura sobre isto, não?”
“Olha para ti com acho e achos. Tens certezas de alguma coisa?”
“Não e é antes de ter a certeza que quero parar com isto.”
“E se quando chegares a vias de facto, vires que estavas errada?”
“É um risco que corro…”
“É um defeito humano querer dar sentido a tudo. Por um lado, faz com que a ciência evolua e, com ela, a civilização. Por outro, tudo perde o seu mistério.”
Mas tens razão. Agora, vale a pena? Olhas para uma flor e ela parece-te bela ao abrir de manhã ao Sol e repara que disse abrir e não o termo técnico. O facto de observares aquilo a acontecer é mágico ou até mesmo uma chuva de estrelas! Claro que tudo isso tem uma explicação perfeitamente racional e científica, mas queres mesmo saber? Claro que queres, é um facto consumado que é preciso saber-se coisas para se ser culto e aceite. Só sei que nada sei e ignorance is a bliss. Às vezes, mas raras vezes, gostava de ser ignorante e feliz, olhar como um burro olha para um palácio e ficar admirado. Ao menos, era feliz com o pouco que tinha e tudo me era mágico e esplendoroso.”
O rapaz olhou em frente e atirou para o ar: “Porque é que fumas?”
O olhar dela seguiu o dele, mas rapidamente se distraiu com outro candeeiro que não parava de piscar. Por momentos, o seu raciocínio saltou para a luz: ora vinha e era brilhante, ora sumia e ficava na escuridão.
“Desculpa, podias repetir?”
“Porque fumas?”
“Porquê? Olha, porque gosto do sabor do tabaco, da sensação. Relaxa-me e até dá estilo” respondeu. “OK, isto foi parvo” acrescentou baixinho e forçou um riso.
“Descer a rua de cigarro na mão, ter ideias e conversas na minha cabeça enquanto o calor me enche… ufa. É libertador e quando expiramos o fumo quente no frio da noite, conseguimos ver essas ideias a ganhar forma à nossa frente. É possível ver também todas as más memórias a saírem e a dissiparem-se com o fumo. É… é algo bom, mesmo sabendo o mal que o cigarro faz” anuiu.
“É coisa que não me faz impressão. Se vamos todos morrer, ao menos vou à minha maneira.”
“Então, o cigarro acalma-te e põe-te bem-disposta. É isso?”
“Sim.”
“E chegaste lá porque fumas e porque conheces em primeira mão os efeitos do tabaco em ti” espetou-lhe um dedo no ombro para a empurrar, como se esperasse alguma reacção.
“Sim…”
“Mas tudo isso pode ser explicado, sabes? Os efeitos da nicotina e do relaxamento muscular, o fumo quente e poético que te queima a garganta e os pulmões. O vício. Conheces tudo isto?”
“Sim, conheço, mas não é isso que me vai fazer parar de fumar.”
“Claro que não, mas está aí no fundo da cabeça! Tens consciência de que o cigarro te mata pouco a pouco, mas mesmo assim não o deixas, mesmo sabendo…”
“…Que vamos todos morrer” terminaram ambos a frase.
“Pois, mas se não o soubesses, fumavas mais feliz. Eu fumava, inclusive. Acho que fumaríamos todos” riu.
“Só para dizer que isto:” e bracejou para abraçar o todo e o nada entre eles “é um cigarro.”
*
Dito isso, a rapariga tirou da bolsa uma pequena caixa de Português Suave e deteve-se na mensagem de aviso. Acabou por voltar à boca do maço e deixar escorregar para a mão um dos cigarros. Colocou-o prontamente entre os lábios vermelhos borrados e acendeu-o com o seu isqueiro que voltou para a bolsa juntamente com o resto do maço.
“Queres?” ofereceu depois de expelir o primeiro fumo.
“Eh, hoje abro uma excepção.”
A rapariga repetiu os gestos, mas para ele.
Fumavam em silêncios interrompidos por sopros quando ele retomou: “isto das relações são como cigarros. Quentinhas; sentimo-nos bem; andamos tranquilos e seguros enquanto duram, mas não podemos confiar às cegas porque se fechamos os olhos, boom – queimam tudo!”
“Tal como os cigarros, consomem-nos física e mentalmente para morrermos no final” pegou no maço agora deixado no banco e virou-o para si para roubar o próximo.
“Uma atrás da outra” e acendeu-o. Ela fez o mesmo nem as cinzas do primeiro tinham caído.
“A nossa relação. Esta relação que queres terminar porque não lhe queres dar sentido porque tens medo, é um cigarro. Não precisa de qualquer explicação ou razão científica – é um cigarro fumado devagarinho e expirado para o ar. Eu sei que me sinto bem aqui contigo e tu também, mas não consegues fechar os olhos e queres continuar a fumar, mas tens tanto medo de viciar que queres já travar de vez. Estas relações que são como os cigarros, terminam. Consomem-se até ao filtro e depois de gastas atiram-se as beatas para o chão ou para um cinzeiro, esmagam-se e vamos embora, se possível a fumar outro cigarro.”
Ela permanecia calada a fitar o chão sujo. Tirou um terceiro cigarro, mas conservou-o para confessar: “a velocidade com que termino cigarros assusta-me…” e acendeu-o.
Colocou a sua mão sobre a dele e esboçou um sorriso que dizia que tinha dito tudo. Ele apertou-a de volta e recuperou a conversa: “se quiseres mesmo dar sentido ao que temos, então deixa-me terminar o raciocínio. Se somos um cigarro, vamos fumar enquanto der, vamos berrar toda a fumarada dentro de nós cá para fora e fechar os olhos. Depois… Depois respeito a tua decisão.”
*
Sentados – ela a olhar para baixo e de relance para ele. Ele a olhar para cima e de relance para ela. Quando cruzavam o olhar, sorriam como adolescentes às escondidas dos parceiros. Em intervalos cronometrados, sopravam na noite e tentavam imaginar formas nas nuvens de fumo.
O maço revelava um último cigarro abandonado que decidiram partilhar um pouco como a Dama e o Vagabundo até ao inevitável beijo roubado.
Ele que nunca fumou, decidira-se pela metáfora do cigarro enquanto os acendia e pisava em seguida, mas levava a sua a avante. Até à cinza. Ela nunca ficava atrás e passavam o pequeno pauzito de mãos em mãos, lábios em lábios.
“Vou deixar de fumar” anunciou a encarar o rapaz.
“Okay…”
“Vou optar por algo mais duradouro e saudável. Assim, se ou quando voltarmos a falar de relações, talvez tomes o meu novo vício como exemplo.”
“Afirmativo e quando é bom, é sinal de que ainda nos vemos por aí.”
Os cigarros jaziam aos pés do par e as cinzas haviam sumido na noite. Assim que o último tombou, ela saltou do banco.
“Bem, vou indo…”
“Pois é, está na hora. Vais bem?”
“Não sei, preciso de algum tempo para mastigar o que me disseste. Se as relações são mesmo como os cigarros, tu foste o melhor que fumei, fizeste-me sentir como ninguém. Acalmaste os meus medos e ansiedades e estiveste para mim quando mais precisei. Aqueceste-me e foste a minha luz na noite mais noite. Só que abusei e fumei demasiado rápido. Estou a tentar sacudir, mas foste tu que me sacudiste. Foste tu, foste tu que me fumaste… Este jardim; este banco; este cinzeiro nunca ficará vazio, isso garanto-te.”
Aproximou-se dele e beijou-o bem nos lábios. Sabiam ainda ao último cigarro – físico e metafórico. Um sabor que nunca mais iria provar, disso ela se tinha convencido. Epá, tinha de ser e o que tem de ser, tem muita força… Com os lábios ainda encostados, sorriu e recuou sem lhe largar os olhos. O sorriso tremia-lhe. Virou-se e seguiu o seu caminho para lá do jardim.
*
Ele ficou a vê-la a ir-se embora e não disse nada. Um cigarro não fala nem pede que lhe fumem a beata. Um bom cigarro dura o tempo que durar e deixa recordações – más, boas recordações e ele sabia que tinha marcado. Sorriu como um bom cigarro que era. Espreitou para dentro do pacote, estava mesmo vazio. Esmagou-o e atirou para o caixote cheio do candeeiro com a sua luz: um holofote e um palco. Ele era o último actor em cena. Procurou o caminho que ela havia tomado, mas só lhe viu o vulto a minguar.
“Idiota, fizeste o melhor que tinhas a fazer…” esfregou a vista. Não que estivesse para chorar, mas tinha a sensação de que tinha chuviscado…
Nisto tudo, as traças continuavam a insistir contra o vidro quente. Ouviam-se os baques secos e o bater rápido das asinhas – palminhas, palminhas! Quando deixou de a ver, passou a ser mesmo o último actor em cena. Expirou todo o ar dentro de si que se tornou fumo e curvou-se para ninguém e desapareceu nas cortinas frias da noite.