“Desculpa o atraso!” lamentou a Morte quando chegou ao nosso encontro. Sim, dei match com a Morte no Tinder e aqui estamos… Num encontro… Já me andava a tentar há algum tempo, e lá aconteceu. Quando a vi entrar no café, foi como uma espécie de encontro imediato em primeiro grau – a vida em retrospectiva; os últimos arrependimentos; tudo a que tinha direito. Sentou-se à minha frente e sorriu. Mas voltemos atrás…
*
A notificação saltou mal abri o telemóvel numa terça-feira de chuva mázinha. Estava a trabalhar quando li a mensagem a dizer para ir ter com ela a uma casa de chá ali na rua do escritório, naquele mesmo dia à tarde. Estranhei o timing da ocasião, mas vindo de quem veio, seria o menor dos meus problemas. E costumava frequentar aquela casa, ia lá bastantes vezes com as miúdas que convidava para sair — era bastante diferente do ir beber um copo. Era… sofisticado e uma boa primeira imagem. Tinha era de sair mais cedo…, coisa que não acontecia há algum tempo, mas uma pessoa também pode dizer que não se sente bem e coiso.
A chuva batia no vidro do escritório como quem chamava por mim. Os meus colegas lutavam para desligar e ligar o ar condicionado: faz mal; faz bem; estou grávida; os filtros não são mudados — às tantas, a coisa lá conseguia ficar desligada sem ninguém lhe mexer durante uns bons minutos. Depois, havia outros que usavam aqueles aquecedores antigos que bufavam pó nas suas salas. E que remédio tinha eu, e alguns, senão vestir o casaco dentro do escritório. E assim as horas iam passando.
Mantive-me calado o dia inteiro. Fiz o possível para permanecer invisível para que ninguém me pedisse ajuda, favores ou se lembrasse de cenas para eu adiantar. Despachei tudo na diagonal e anotei o que tinha de fazer logo pela manhã, mas só amanhã. Hoje tinha um encontro com ela, a Morte. Assim que o relógio do computador materializou as dezoito em ponto, peguei em mim e no que era meu e ala que se fazia tarde. Não me despedi, pelo sim pelo não, e fechei a porta bem devagarinho para deslizar pelas escadas até à saída do prédio. Safo!
Desapareci do mapa sem prestar contas. Em breve, estaria a chegar à sala de chá e como ia a pé, e à chuva, muita sorte teria se chegasse primeiro e apresentável. Dez minutos apressados e cheguei à porta tal como imaginara: encharcado. Mesmo com este tempo, havia demasiada gente na rua àquela hora. E a casa de chá? Quase cheia. Não chovia lá dentro, e ela também não tinha chegado. Dava tempo para me ajeitar.
A porta anunciou-me com um plim. Ninguém olhou. Entrei, ignorei tudo à frente, empregados, mesas, exposição, o mundo e segui para a casa de banho. Não demorei – só deu mesmo para secar a cara com os papéis ásperos e alisar o cabelo para o lado quando recebi a mensagem dela a dizer que já estava na rua. E um pedido de desculpas por estar atrasada. Quando saí, sentei-me na primeira mesa vazia e fiquei a vigiar a porta.
Plim, lá entrou ela, a Morte.
“Desculpa o atraso!” lamentou-se novamente. E tal como eu, chegara encharcada, mas com um sorriso nos lábios.
“Está no horrível lá fora” comentou com os olhos postos em mim enquanto lutava contra a gabardina. Deus meu, ela é linda.
*
O aroma dos muitos chás era contagiante e o fumo subia das bocas escancaradas das canecas e das chávenas, serpenteava pelas cabeças conversadoras e desaparecia nas memórias. A Morte estava agora ocupada com a sua carta de chás e eu não sabia se havia de interromper ou continuar a espreitá-la por cima daquele cartaz plastificado de bebidas quentes e frias. Observei finalmente o espaço onde estávamos como se fosse a primeira vez que o visitava: pessoas sentadas em cadeiras de madeira, juntas a mesas de madeira; canecas, chávenas, bules e pratos; quadros e desenhos e janelas a escorrer o fim de tarde da rua. E conversas animadas e chamadas pela empregada que deslizava atarefada e solitários que vinham para ler ou escrever. Tal como eu, todos guardavam uma história no bolso.
Quando voltei à realidade, era ela que me observava agora. Atenta e sorridente, mas também um nada distante e eu sei que isto é cliché (provavelmente, também ela), mas caramba que estava bela de negro, mesmo parecendo estar em luto perpétuo. O outro cliché são duas pessoas falarem imenso na Internet, mas estarem caladas na vida real, portanto deixámos o tilintar das colheres preencher os silêncios, aqueles espaços mortos das conversas.
“O que vão beber?” perguntou uma empregada afável quando chegou até nós.
“Oh, hortelã-pimenta, por favor” pediu a Morte que depois olhou para mim a aguardar.
“O mesmo, obrigado…” respondi sem pensar. É humilhante admitir, mas não estava a conseguir raciocinar muito naquele dia, era como se estivesse em piloto automático. Num acidente sem me conseguir desviar ou travar. E estava tudo bem.
Despediu-se com um até já e deixou-nos ali abandonados à nossa companhia.
“Ei” a Morte sorriu. “Como foi o teu dia?”
“Lento” esfreguei as pernas para me livrar de algum torpor. “E o teu? Que fizeste hoje?”
“Oh, um pouco disto. Um pouco daquilo. Mas já sabes, não é?”
Não sabia, mas anuí. Afinal, ela era a Morte e eu um gestor de redes sociais. Quer dizer, eu era mesmo um gestor de redes sociais, isso era certo, mas não tinha tantas certezas sobre a bio do Tinder dela. A pessoa sentada à minha frente tinha zero aspecto de ceifeira e mesmo se tivesse, e mesmo se fosse, por que raio estaria no encontro comigo?, um gestor de redes sociais.
“Eu sei o que provavelmente estás a pensar…” e sublinhou o provavelmente para a frase seguinte não soar estranha, “porque é que a Morte está a sair comigo, mas a verdade é que gosto de falar contigo. Bem, e porque também tenho o direito de me divertir!”
E antes que pudesse responder, a empregada simpática deixou os nossos chás fumegantes em duas bases para não manchar a mesa limpa.
“Mas o que significa o estares aqui? Estás de folga ou…” hesitou, “és mesmo omnipresente?” perguntei, mesmo com a noção do quão ridículo estava a soar.
“Saí do trabalho há pouco. Tal como tu. Tem piada achares que estando aqui contigo, também estou algures noutra parte do mundo numa inundação qualquer ou numa guerra. Eu sou boa, mas não sou assim tão boa!” sorriu, mas um sorriso prazenteiro, e não de gozo.
Bebericámos à vez. Um beijo apreensivo no rebordo da caneca – porra, quente! Então, a Morte ergueu a mão para a empregada agora sentada atrás do balcão que se aproximou com um está tudo bem?
“Desculpe incomodar” disse a Morte, “mas podia trazer um prato de bolachas de gengibre? Vão tão bem com este chá delicioso. Acredite, há muito que não bebia um chá tão bom. Obrigada”, sorriu-lhe.
“Claro, volto já” desapareceu corada.
Estava impressionado. Ou não estava habituado a pessoas serem simpáticas.
“Não menti. Está mesmo muito bom, não concordas?” concordava. “Vivemos muito rápido e andamos sempre chateados com o que nos atrasa, que não paramos para agradecer pelo chá. Parar, molhar uma bolacha na água quente e saborear.” Voltei a concordar, mas não devolvi uma resposta. Acho que não estava preparado para aquele nível de sinceridade.
Enquanto a Morte bebia o seu chá com as bolachas de gengibre, continuei a mirar a rua a escurecer pela grande janela. A chuva insistia, corria em rios vidro abaixo, dando aquele astigmatismo ao mundo lá fora. As pessoas passavam com os seus chapéus, uns com pressa e outros nas calmas a aproveitar o mau/bom tempo (dependia da perspectiva). Do nada, lembrei-me de uma Londres numa viagem antiga. Ia ter saudades de Londres… Ia…
“O que preferes: chá ou café?” ela trouxe-me de volta à sala. Tal como eu, também tinha o casaco pendurado na cadeira, com pequenas poças da chuva aos pés. Os ombros pálidos pareciam nunca ter sido beijados pelo Sol, mas havia uma cor nela que irradiava vida.
“Sim” respondi até me aperceber, mas ela não me corrigiu nem repetiu a pergunta.
“E tu?” perguntei para salvar a conversa.
“Adoro!”
“Eu só bebo café de manhã” comentei.
“Para acordar ou para arranjar o intestino?” Queria dizer que ela estava a gozar comigo, mas aquele sorriso desarmava-me e dizia-me que sim, ela estava mesmo curiosa e era inofensiva. Afinal, até a Morte tem de ir à casa de banho….
“O café é um placebo…” não esperou pela resposta. “Acabas é por fazer as mesmas asneiras, mas mais rápido. Mas vá, eu sou uma mulher de cafés. Qualquer um. Já provei de todos, mas o meu favorito tem de ser negro, forte e longo. Tal como eu, se fores bem a ver.”
Parou de imediato para escutar alguma coisa ao longe e retomou:
“Estou à procura de uma metáfora profunda, mas o que posso dizer é: o café é excelente para fazermos bolo de bolacha!”
Sem saber o que responder ao seu discurso sobre café e movimentos intestinais, pedi outro chá, agora de maçã e canela. E ela um verde.
Olhou para mim e cruzou os braços com um ar de superioridade fria.
“Concordas em saltar a conversa de adulto?” sacudiu a mão no ar para desenrolar a conversa e eu só acenava parvo sem compreender.
“Vou fazer umas perguntas, pode ser?”
Mas… “Ok…”
A Morte descansou as palmas das mãos sobre a mesa, os dedos afilados, limpos e despidos de adereços tamborilavam no tampo castanho-claro. Inclinou a cabeça como um passarinho e sorriu-me um sorriso de quem me ia tramar – mais. O cabelo negro deslizou-lhe para a frente ao mesmo tempo que lhe descobria as rugas pensativas em redor daqueles olhões. Desapareceu com uma mão e quando a puxou, revelou um bloco de post it amarelos. Da outra, uma esferográfica que não tinha reparado.
*
No espaço de uma hora, atirou-me com uma série de perguntas sem me deixar respirar: cor favorita? Azul; dinossauro favorito? Err, não sei!; que tipos de massa sabia cozinhar até ao meu pijama favorito. Era tudo tão ao calhas!, mas deixei-me ir naquilo porque via-a feliz e não tinha pressa. Nas pausas do questionário, bebericávamos o chá até que ela saiu para ir à casa de banho. Regressou por entre o fumo aromático das bebidas que cobria a sala com um véu cinza, onde as outras pessoas pareciam actores de peças de teatro de sombras. As suas conversas não eram mais do que zumbidos animados e a Morte sentou-se para retomar o questionário. Eu também queria perguntar coisas, mas juro que nem tive oportunidade. E ela continuava tão animada, e ria com as minhas respostas. Quem diria que descobrir que desenhava com a canela na aletria tinha tanta piada.
“O que é que é te enerva?” Perguntou por fim.
Esta conversa.
“Como assim?”
“Diz-me aquilo que te tira do sério.”
Já não restavam mais bolachas no prato, apenas as migalhitas que ela calcava com a ponta do dedo para levar à boca.
“Acho que nunca me enervei. Bem… pelo menos a sério.” Era verdade, nunca ninguém me vira zangado, nem eu… “Há coisas que não me agradam, mas…” Nem sabia falar como deve ser.
“Mas…?” A sua expressão alterou-se. Afastou a caneca e mordeu o lábio inferior satisfeita.
“Entristece-me acordar. Quando olho para o despertador a tocar, vem-me uma lágrima ao canto do olho” aquela piada… “Um novo dia. Uma nova oportunidade de tudo correr mal. Porquê levantar se, sei lá, posso morrer?”
“Mas também pode acontecer alguma coisa boa” contrapôs.
“Sim, são aqueles fifty fifty, mas porquê arriscar? Se acontecer algo de bom, aconteceu e assim passa a caravana. Já o mal afecta muito mais. Ficar na cama é o mal menor.”
“Então, se percebi bem: porquê fazer a cama se nos vamos deitar mais tarde? Ou no teu caso, porquê levantar de todo?” Anuí.
“Exacto!” Ergui a caneca para brindar ao entendimento!
“Estou-te a imaginar à nascença: porquê nascer se irei morrer ou, pior, ter uma vida miserável? Ei, mais vale ficarmos por aqui!, enrolar o cordão umbilical ao pescoço e xau aí! Era só esperar por um colega meu e pimba. Feito.” E agora estava a rir a bom rir, a gargalhar como se tivessem contado a melhor anedota desta vida e da outra, mas ainda assim, sabia que não estava a gozar comigo. Sentia-a orgulhosa da sua metáfora e dona de alguma razão.
“Se pudesse” suspirei. “Mas no útero ninguém pensa nessas coisas.”
“Como sabes?” Recuperou o tom calmo. A boca cerrou num pequeno túmulo vermelho rúbeo.
“Não sei, se calhar é por sermos bebés?” Sacudi os ombros a roçar o irritado.
“Não te lembras de pensar? Ou pensas que não te lembras? Qual foi o teu primeiro pensamento ao nascer?”
“Não faço ideia…”
“Vá lá, faz-me essa vontade” miou com direito a olhinhos e tudo – ela era tramada…
“Uau! Demasiada luz!” decidi aparvalhar.
Então, ela sorriu vitoriosa.
“Não é o que dizes todas as santas manhãs ao acordar?”
“Quando abro a janela, sim.”
“Boa! Estamos a chegar a algum lado! Deduzo que estejas a nascer todos os dias. Tão bonito e poético, não achas?”
Continuou a observar-me por detrás da sua chávena, mas conseguia ver-lhe um outro sorriso matreiro.
“Já leste García Márquez?”
“Ná…”
“Devias. Ele tem um livro chamado Amor Nos Tempos De Cólera e escreve que uma pessoa não nasce apenas quando a mamã abre as pernas, mas todos os dias porque a vida assim obriga.”
*
E com isso, ninguém disse mais nada. Continuámos a beber o chá em silêncio absoluto, um silêncio sensivelmente mais doce. Só então é que reparei numa música aguitarrada que talvez fosse da rádio ou de alguém a tocar algures, o que seria impossível com o temporal lá fora. E foi a voz dela que me voltou a recuperar para o meu lugar.
“Pensa: todas as noites, fechamos os olhos até morrermos no escuro. Aquelas despedidas: boa noite; dorme bem; até amanhã se deus quiser não são mais do que eulogias sentidas. Depois, morremos uma morte calma para nascermos de novo se tudo correr bem ou se o tal deus quiser. Portanto, se pensarmos como tu, passaremos o dia com medo de que o céu nos caia em cima ou com medo da hora do Vitinho.”
“Pois…”
“Pois. Pois, pois… Olha, não te vou dizer para viveres a vida ao máximo. Isso é um cliché e estaria a queimar-me no emprego. Apenas te digo: bebe o teu chá porque agora estamos vivos, mas não insistas… Já viste o Forrest Gump?”
“Já, sim.”
“Então sabes que a Jenny passa o filme a desejar pela morte e até faz por isso. Só que viveu, fez pessoas infelizes, felizes, mas viveu. Até que a minha colega cinematográfica foi lá e fez-lhe a vontade.”
Não contestei aquela lógica… Ela suspirou.
“Sabes que mais?, gostei de hoje! Acho que isto pode ter pernas para andar.”
Sorriu honestamente, mas já sem a caneca a ocultar-lhe a cara.
“Mas da próxima que nos virmos, digo-te o meu nome. O meu verdadeiro nome.”
Fez uma careta a olhar para o fundo da caneca. Pousei a minha e afastei-a para o meio da mesa.
“Vou indo, sim?”
“Quando te posso ver?” perguntei-lhe.
“Eu mando-te uma mensagem, tá?”
Passou as costas da mão pela minha cara e um arrepio infinito percorreu-me a existência. Estava gelada como mármore, mesmo depois de dois chás a escaldar.
“No próximo encontro, és tu que vais fazer as perguntas. Combinado? Tens uma vida para pensares nelas.”
“Porquê no próximo? Não vieste para me levar?” perguntei com um peso no peito por ela se ir sozinha.
Levantou-se e arrancou um post-it do tal bloco amarelo, onde escrevinhou qualquer coisa.
“Porque gostei de ti, não te disse?”
Deu-me um papel arrancado com as seguintes instruções que li quando se afastou para a rua encharcada com um último sorriso, plim plim.
Vai à casa de banho e conta até quinhentos e vinte e três.
A empregada olhou-me suspeita quando me viu fugir à casa de banho. E contei sentado no cubículo. Isto é tão parvo e voltei-me para o espelho para contar. Amarfanhei o papelito quando cheguei ao último número e nesse preciso momento ouvi a confusão de coisas a cair, a quebrar e alguns berros aflitos. Saltei dali para fora e quando cheguei à sala, vi a empregada simpática a ser amparada por alguns clientes. A bandeja de canecas redonda no chão e cacos sobre chá a ferver.
A frente de um carro tinha-se enfiado contra a enorme janela, espirrando vidros e virando as mesas e cadeiras perto. Havia uma pessoa deitada, mas estava viva. Estava bem. A nossa mesa estava tombada, mas mais pela confusão. Por um instante egoísta, respirei de alívio. Podia ter estado na sala, mas estava na casa de banho a… a contar.
O gerente já correu por mim e quando lhe disse que estava bem, abraçou uma cliente chorona que se desfazia abraçada a uma mala. O condutor estava de pé e de braços na cabeça. O resto das pessoas de telemóveis nas mãos…
Só queria sair dali. Não conseguia acreditar. Não dava mesmo. Ela, a Morte, tinha salvo a minha vida. E saiu sem pagar a parte dela. No final de tudo, a conta seria um mal bem menor. Ninguém pagou naquele dia, anunciou o gerente quando a polícia e os bombeiros chegaram.
Plim plim, a porta não parava de tagarelar. E saí para a chuva, para aquela cidade que não era Londres. Pensando bem, acho que vou meter férias e passear um bocado por lá. Ouvi dizer que eles são peritos em chá.