Um Sítio Sem Gatos

black cat walking on road

Sinto falta daquele terraço. Da sua companhia. Daqueles cabelos de fogo…

*

“Então, e ainda não viste gatos por aqui?” apontei para o fundo, para o muro alto e sujo que protegia e abraçava o terraço daquele T0 no Saldanha.
“Já” respondeu breve. “Um ou outro vadio…”
Regressou ao silêncio, mas o silêncio daquela rapariga era um de reticente. Senti-lhe um aperto na voz como uma vela abafada entre dedos húmidos, assim que devolvi a atenção aos prédios gigantes que nos observavam pachorrentos.
Talvez nenhum gato sobrevivesse aqui…, pensei antes de me censurar.
“A verdade é que não ficam muito tempo por aqui. Os animais vadios desaparecem…” retomou, como se me tivesse lido a mente.
“E porque dizes isso?”
“Porque estamos numa boa zona da cidade” olhou em volta, em jeito de partilhar um segredo. E aquilo dissera tudo o que precisava de saber: uma zona chique tinha de ter uma boa imagem. Não havia cá gatos, cães ou pessoas vadias. Já era uma sorte eu estar aqui – neste enorme terraço…
“Tenho de admitir” quis mudar de assunto: “nunca pensei vir a beber chá a ferver em pleno Agosto.”
Bufei para o líquido a escaldar.
“Não sejas mariquinhas e bebe lá isso.”
Obvio que era só conversa. Ela mal tinha tocado no seu. Num minuto estava a aproximar-se dos lábios da caneca, noutro instante a fugir daquele beijo quente. Também ela esperava que o chá arrefecesse com o final daquela tarde de Verão.
“Nem está muito calor hoje…”
“Está coiso. Saí de casa com casaco para depois estar aqui a derreter… ”
“Gelo?” ofereceu. Acenei que sim e ela saltou do degrau para a sua cozinha mimosa que abria para o terraço.

*

Ali sozinho, constatei algo enquanto estudava e invejava o terração: as paredes não eram equiláteras, os ângulos não eram rectos e o chão não estava nivelado. Reparei numa construção alienígena e em portas que abriam para nenhures e naquela sensação de observação constante como se aquele vácuo urbano estivesse vivo e respirasse sobre o meu pescoço. Ao mesmo tempo… podia dizer que o pátio era perfeito naquelas imperfeições.
Mais para o alto dos andares, espiei uma senhora roliça a cozinhar à janela. Imaginei-me a cheirar o refugado naquela cozinha e tentei adivinhar o que seria o jantar: o dela e o nosso daqui a pouco. Entretanto, a anfitriã Amélia regressou com gelo para as duas canecas que deixou cair em cada uma. Afundaram, vieram ao de cima, estalaram e urraram na infusão quente. Pensei mesmo que fossem explodir naquele choque térmico, como naquela memória do liceu… Sim!, acho que a escola estava a celebrar o Dia da França e o menu era uma aproximação regional nada a ver, mas o que interessava para a recordação era que o copo estava quente e quando o enchi de água, rebentou no tabuleiro. Ou um espírito esganou-o até mais não.
Ela soprou. Eu soprei. Bebericámos em silêncio.
“Acho que vou fazer um jardim aqui.”
A Amélia levantou os olhos e percorreu o chão de laje.
“Árvores, flores e relva. Muita coisa…”
E regressou ao silêncio. Imaginei-me naquele jardim e naquele pátio, perdido entre prédios modernos e zonas chiques sem gatos. Não me parecia bem, mas via o apelo em haver alguma natureza naquele buraco seco e desprovido de vida e identidade.
“Sabes que sem gatos, um sítio não é um sítio” apontei.
Ela olhou para mim de cenho franzido.
“Desculpa!” ri-me, “mas imagina aqui o teu jardim cheio de animais!”
“Sou alérgica” recordou-me. “Não a todos, só faço alergia àqueles gatos de pêlo comprido.”
“Certo.”
Voltei a beber o chá já mais frio. Naquele instante, como se algo explodisse em mim, entendi por que razão não me parecia tão Verão naquele dia: o vento. De início era subtil, quase inexistente, mas comecei a dar por ele nas roupas estendidas a arrastarem-se contra as paredes multicolores; no fumo do chá que fugia para o céu, mas foi ao meu lado que o vi melhor: quando apanhava os cabelos rúbeos da Amélia, atiçando-os como um incêndio selvagem que nascia todos os Verões neste país e pequenos fios perdidos que pareciam memórias de fogo-de-artifício num céu negro de festas populares. Era doloroso de olhar, queimava-me e cegava-me até desviar a vista, é assim que as pessoas que olhavam para o Sol se sentiam. O Sol era bom, era acolhedor, quente e muito nosso, mas queimava, sufocava. O cabelo da Amélia era um pequeno Sol – bom, mas não podíamos olhar para ele durante muito tempo; queimava, apaixonava. Depois, a brisa…
A Amélia voltou a falar do seu jardim e parecia saber onde cada planta iria ficar.
“E porque não uma pequena piscina?” arrisquei um tom trocista. “Daquelas de encher dos chineses.”
“Não sejas parvo” riu-se também. E foi quando se virou para mim que consegui reparar nos olhos dela: no meio daquele fogo que ardia à nossa volta, pareciam drenados de cor. Não havia nada para além do reflexo de um hipotético jardim com sebes tão altas que escondiam o céu. Era um labirinto sem gatos, mas havia lá outro alguém: uma Amélia que vagueava perdida por corredores verdes, perdida há imenso tempo, mas sem se mostrar assustada ou triste. Parecia não sentir ou saber-se perdida, apenas andava em frente e virava à direita, depois sempre em frente e à esquerda até voltar ao mesmo sítio. Havia um caminho predefinido na sua cabeça ou assim dava a entender. Não sei se ela me ouvia, mas disse-lhe que podia trepar às sebes para escapar, só que continuava a ignorar-me como um gato muito dono do seu nariz.

*

Olhei de novo em volta e confirmei que não havia um único bicho. Olhei para a Amélia e também não a vi ali sentada. Estava, mas não estava e o único sítio onde a encontrei depois foi num pequeno diário que descobri ao lado dos biscoitos de chocolates, na cozinha. Limpei os dedos e folheei as páginas.
O diário tinha várias fotografias do passado de Amélia, um passado onde os seus olhos não tinham jardins, mas cor e onde o cabelo não ardia. A cada detalhe que me interessava, ou seja: todos, perguntava o que tinha acontecido naquele momento. Para mim, o mais interessante nas fotografias não era a imagem em si, mas o antes e o depois porque duas pessoas podem aparecer juntas a sorrir, mas um segundo depois estarem-se a odiar. É isso que adoro nas fotografias, nunca mostram o que queremos ver, é uma história com (…) e eu adoro histórias com (…).
Quem também gostava de histórias era a Amélia que parecia saber o passado de cada coisa que tocava, como se fosse mestre em psicometria! Passava bons bocados a falar-me de olaria e de outros objectos encontrados em escavações que fazia no seu curso. Para um leigo que só pensava em gatos e (…), aquilo era delicioso e fiquei a saber que por detrás de cada “pedra” existia uma história.
“E o que é isto?” virei uma imagem para ela.
“Isso é um mamilo.”
A resposta não era a que esperava e calei-me…
“Ou um pénis!”
Mas ela não iria ficar com a última palavra! Não conseguia parar de rir, mas tinha de me explicar ou ela iria pensar que era ignorante – ou mais ainda.
“Bem, há pénis deste tamanho ou ainda mais pequenos. Vi na Internet que um homem tinha o pénis para dentro e não conseguia ter uma erecção.”
Era verdade, tinha visto esse caso clínico na Internet. Acho que me tinha safado, mas por que raio estava a de falar de pénis? Foi arrumando as fotos dentro dos respectivos protectores à medida que mas mostrava e íamos terminando o chá.

*

Reparei que havia algo de familiar neste momento, uma espécie de voz e de sentimento de déjà-vu, como se estivesse a falar com alguém com quem já tinha falado antes, mas sabia que eram pessoas radicalmente diferentes. Havia uma estranha semelhança que começava pela batuta que se erguia e sacudia o ar; uma voz que parecia querer soltar-se e explodir em milhares de palavras, mas com correntes invisíveis a puxá-la para um jardim imaginário. Podia sentir uma força imensa adormecida e impedida de lutar e à memória vinha-me a história do titã Prometeu acorrentado à rocha, rodeado de mar e com a águia a dilacerá-lo impotente. Seria assim que ela se sentia?
Não havia mais chá no fundo da caneca e tinha o rabo a adormecer. Tinha de me ir embora, estava a mais e ela tinha a sua vida. Levantei-me e sacudi as calças. Pudesse ficar mais tempo ou a beber mais chá ou a falar de gatos e era uma pessoa mais feliz, mas a esta hora os jardins estavam interditos.
“Bem, tenho de ir. Gostei muito…”
Ela acenou satisfeita, era bom sinal.
“Voltamos a combinar?”
“Oui.”
Ainda sorri, mesmo podendo estar só a ser simpática.
Apertei o casaco, mesmo naquele tempo, e senti os intervalos irregulares do coração. A falta de gatos era um sentimento estranho e temi ficar ali e desaparecer para sempre, como os tarecos no pátio ainda sem jardim. Seja como for, tenho boas pernas e bons braços, acho que conseguiria dar cabo de alguns labirintos. Espreguicei-me, despedi-me com dois beijos demorados e bem intencionados e lembrei-me das canecas na rua. A Amélia disse que depois tratava delas.
Não havia ninguém no fresco da rua àquela hora, mas tinha a sensação de que conseguia cheirar o jantar da outra senhora. Despachei-me para apanhar o barco e corri para os transportes a remoer na tarde. Pensava demais; preocupava-me sem necessidade e sentado na carruagem vinha-me uma história à cabeça, não a das peças com mamilos; não a das fotos no diário, mas a história da Amélia a construir um grande jardim no seu pátio. Eu insistia na piada da piscina ao Sol e com uma geladeira cheia de minis. Isso sim, seria vida! Mas cada um com a sua…

*

Chegado ao barco, este arrancou e vi-me rodeado de rio. Aquilo que tanto queria e lá acabei por adormecer a sonhar com pessoas perdidas em memórias antigas e o sonho era algo do género:
A Amélia encolheu-se naquele jardim sombrio. Reparei que os anos passaram por ela sem qualquer mossa. Continuava linda como no primeiro convite a casa, mas já não sentia o incêndio que a alimentava. Os seus ossos gelavam com as horas. Não percebia se era mesmo frio ou se era uma coisa só dela e séria.
Com um arrepio a percorrer-me a espinha, olhou-me quando me descobriu na distância. Sempre que ali ia sentia-se observada. Agora, por mim. Mas era um lugar que, vá-se lá saber porquê, parecia chamar por ela; as folhas sussurravam-lhe de familiarizadas que estavam; e as árvores sabiam sempre o que queria. Ela era a cliente habitual daquele estaminé.
Encolhia-se. Olhava à sua volta. Devíamos estar na parte mais antiga do jardim; as árvores cresciam em troncos grossos e os ramos abrigavam-na com a sabedoria de tempos. Mas por outro lado… Atrás do banco antigo em que se costumava sentar, uma árvore, maior e mais escura e mais velha do que as outras, estendia a sombra da Amélia até mais não; até ela ser toda uma sombra da sua verdadeira pessoa. E todos os dias fazia um esforço monumental para não se afundar nessa escuridão que tinha um não sei quê de maléfico.

*

Acordei de sobressalto quando a mochila escorregou. Dei conta de que estava a sonhar um sonho que não era meu – mas um da Amélia! De algum jeito sobrenatural, tinha entrado na sua cabeça; no seu jardim. Mordi um latido e caí nos bancos daquele barco à deriva no Tejo. O frio era horrível e tinha escapado comigo para o mundo dos acordados, estourando-me os nervos e cegando-me até cair inconsciente!
Nessa mesma noite e com o coração ansioso, segui os meus passos até regressar ao jardim da Amélia. Sem sebes ou labirintos, era um jardim em forma de pátio urbano e era imperfeitamente perfeito. A cacofonia do trânsito foi ganhando outros detalhes de passos; do estalar de relva por cortar; do mastigar; do esgravatar e dos miados. Sorri com os novos sons familiares. Abri as mãos e deixei os dedos afundarem-se na relva. Comecei a distinguir melhor o mundo e todas as cores das plantas e dos animais que surgiam à velocidade do sonho.
Ergui-me a custo e olhei à procura de alguma coisa: havia duas canecas de chá a fumegar num degrau, mas não estava lá ninguém para o beber. Fui e sentei-me porque um chá iria cair-me bem. Peguei na minha e soprei o líquido mais quente daquele Verão. Via os gatos aqui e ali, a passear entre as árvores; um lambia-se languidamente em cima do muro e outro esteirava-se na relva verde; gatinhos pequenos brincavam à luta sob o olhar vigilante da mãe e outros cavavam buracos. Havia imensos gatos de todas as cores e feitios, gatos pequenos que me olhavam curiosos e assustados e gatos granditos que me ignoravam para estarem na sua ou a rebolar no chão.
Continuava sozinho no meu degrau, no meu jardim sem piscina e com os meus gatos, mas decidi deixar a caneca de chá a mais para quem se quisesse juntar. Era fácil, bastava seguir o fumo e acompanhar-me… soprei e bebi bem devagar para não me queimar quando uma sombra se aproximou por trás e sentou-se mesmo ao lado. Senti o calor do cabelo e espiei pela sombra a forma como embalava a outra caneca entre as mãos. Bufou e aproximou-se do líquido a ferver…
“Quero ver quem é que vai limpar a porcaria que os gatos fizerem” gozou a voz da minha amiga Amélia.