Peeira ou fada dos lobos é o nome que se dá às jovens que se tornam guardiãs ou companheiras de lobos. São a versão humana e feminina do lobisomem e pertencem ao folclore de Portugal e da Galiza. A peeira tem o dom de comunicar e controlar alcateias de lobos...
O céu a espreitar pela ramagem da mata adormecida era da cor das cinco, quase seis da manhã: um cinzento com vestígios de azul a ganhar força com o avanço das horas. E o caçador envolto num verde camuflado avançava solitário de tronco em tronco velho, com as poucas aves madrugadoras curiosas com o intruso. As restantes dormiam ignorantes.
O manto de caruma e bicharada morta estalava sob as botas pesadas do velho que cuidava do passo com os nervos de um soldado perdido em território inimigo. De olhos secos e duros postos no caminho à sua frente, seguia com a espingarda adormecida nas mãos. Reduziu o passo e desceu um joelho ao chão quando o descobriu mesmo ao fundo pelas árvores: aquele lobo velho; mais ossudo desde o último encontro, como se não caçasse há demasiados dias; mirrado, sujo, gasto – fácil. Um suspiro de vento seria suficiente para o atirar ao chão e ninguém iria sentir falta daquele lobo sarnento condenado a ser devorado pelo próximo…
O caçador recuou e desapareceu como um especto, com apenas o cano da espingarda a subir curiosa para espreitar o animal. Deslizou o polegar sobre o gatilho e susteve a respiração. O velho lobo ergueu o focinho na direcção do predador, como se as intenções o tivessem traído. Espiou-o pela mira até ao camuflado sujo e até aos ossos frios. O troar do disparo varreu o arvoredo e a mata estava finalmente acordada.
Morte, morte, morte!, urravam os animais que corriam para assistir, mas o que descobriram foi uma criatura tombada, a agoniar… Um fio de fumo branco lambia os lábios da espingarda. A respiração quente do caçador escapou-se com um suspiro, feito. E materializou-se aos olhos dos bichos curiosos, morte, morte!, continuavam. Estavam assustados, mas não o suficiente para se afastarem do predador que cortava a distância até presa. No fundo, havia sido uma clemência…
*
Junto à criatura arfante, voltou a agachar-se sobre o que era agora um corpo de pessoa torcido no chão. Uma menina pálida e coberta de peles encardidas e empastadas de sangue, a lutar com a respiração entre palavras que se afogavam em lábios rachados. O caçador ignorou-lhe as feições estreitas e delapidadas, o nariz subido, aqueles olhos virulentos e afastou-lhe o cabelo avelã da testa. O sangue derramava numa poça que se aproximava da sola das botas do caçador. A menina apertava os dedos de uma mão vazia que empurrava a terra para apanhar algo que lhe fugia; as perninhas chicoteavam folhas e ramos quebrados para o fundo dos pés calejados e arranhados. E a língua enrolava-se ao tentar lamber o que restava do seu último orvalho. Como um peixe roubado da água, encontrou os olhos do caçador…
Descansou a arma ao seu lado, no chão, e revelou uma lâmina que já vira melhores anos. Com um palmo de mão adulta, seria o suficiente para não engonhar no que tinha de fazer e com a mão livre, virou e prendeu a cara do lobo para revelar um pescoço despido. Com a outra, crispou o punho da faca e inseriu a lâmina na jugular em dois movimentos cirúrgicos: furou e entrou até a lâmina desaparecer em bágoas de sangue. A menina que voltara a ser o lobo velho contorceu-se uma última vez e relaxou num suspiro sufocado. Puxou da lâmina, seguida de um rio de sangue que lhe tomou as calças e as mãos geladas.
Desceu a palma pelo focinho e fechou-lhe os olhos para não ver o que ia acontecer a seguir. Afagou-lhe o pêlo cinzento velho ainda quente e aproximou o fio da lâmina à linha da testa: o primeiro golpe iria separar a pele; o segundo iria sentir a carne; iria começar a serrar e a puxar pelo escalpe. Algumas partes ofereciam resistência, obrigando-o a serrar com mais força. Quando terminou na cabeça, recolheu a cabeleira avelã e guardou-a no camuflado para não se sujar mais. Ergueu o animal pelo cachaço e virou-o de costas para repetir os movimentos. Assim que a lâmina rasgou a pele, o caçador puxou e separou-a como um farrapo velho, desnudando a criatura.
As horas avançavam, mas os minutos haviam congelado para o caçador embrenhado na tarefa. Com o resto do pêlo aos ombros, abandonou a forma grotesca de carne e vísceras para as criaturas esfaimadas à espera que o humano desaparecesse dali. Qualquer semelhança entre pessoa e animal restava apenas nas memórias do caçador. E quando voltou a si, o primeiro ruído que ouviu fora o zumbido das moscas que arriscavam lambuzarem-se no sangue grudento ou nos restos da carcaça. De pé, preparou-se para abandonar as testemunhas daquele espectáculo sanguinolento – a mata com as aves a vigiar e a julgar na segurança dos seus poisos. Em breve, o matadouro estaria cheio de outras vidas.
Arrumou a faca a gotejar na bainha e recuperou a espingarda arrefecida. Satisfeito e muito orgulhoso da sua conquista, viu-a novamente ao longe – a rapariga. Triste, e a dizer palavras mudas, quando sentiu os pés a tremer e a criatura disforme a contorcer-se para o puxar pelo braço contra o chão alagado de vísceras e porcaria.
II
“Homem!” uma mão forte sacudiu-o. “Homem!” voltou a chamar a voz da sua mulher na escuridão do quarto. O Anselmo lá acordou ensopado de suor e de terror.
“Hum…”
“Outra vez, Anselmo” suspirou. A mulher esticou-se para o pequeno candeeiro de cabeceira e trouxe uma luz ao quarto do casal para encontrar o marido especado para o tecto. E o mais triste, é que não era a primeira nem seria a última vez que iria encontrar o homem naquele pranto. E a rotina era sempre a mesma: descer da cama; mandar o marido sair e despir-se do pijama. Prendia os lençóis enquanto o marido trocava de roupa e caía na cama como se não fosse nada com ele. Atirava a roupa suada para um canto e enfiava-se junto do marido – uma dança aperfeiçoada em tristes repetições.
“Anselmo” chamou-o das sombras do candeeiro, mas o marido já roncava, deixando a mulher desperta e a amaldiçoá-lo. Virou-se para apagar a luz e devolveu o quarto a uma escuridão que já dava lugar à manhã.
*
A Josefa já estava de volta na cozinha quando o marido entrou e se sentou à mesa com restos de sono. À sua frente: pão, manteiga, queijo e café preenchiam a mesa. O homem começou por um pedaço de pão seco e logo recuperou a faca encostada ao pires da mulher. Cortou uma fatia de queijo e retirou-lhe a cera. Embrulhou o queijo ao que restava do pão e devorou-os em silêncio, mastigando ruidosamente.
A mulher serviu-o de café e perguntou se queria leite ou se o podia arrumar. E ele apenas sacudiu a cabeça enquanto entornava quatro colheradas de açúcar na caneca. Empurrou o pão para baixo com o café quente e voltou a arrancar mais como um animal, em vez de o cortar à faca. A Josefa tomou o seu lugar à frente do marido, com alguma ansiedade nos olhos. Cortou outra fatia de queijo para se manter ocupada e enquanto mastigava, voltou à conversa de sempre:
“Devíamos ver o doutor” começou com o cuidado se incluir nas palavras e na intenção.
“Já falámos disto… “ posou o café para procurar algo na mesa e evitar o olhar da Josefa.
“Não podemos continuar assim” sentiu-lhe o braço teso.
“Já falámos uma vez e não fez nada.”
“Uma vez, homem. Uma vez! Podemos falar com outro doutor! Ou ir a Lisboa.”
“E quê? Um médico dos tolos?” virou-se com a simples menção de Lisboa. Tentou recuperar a caneca, mas as mãos tremiam-lhe.
“Olha para mim” segurou-lhe as mãos perdidas. “Dormimos no mesmo quarto. Tu acordas aflito. Eu acordo aflita. Mudo-te a cama, a roupa e vejo-te a adormecer. Mas eu não prego mais olho de preocupada!”
Deteve-se mais composta, a pensar como haveria de continuar:
“Sabes o que me deixa mais triste ou zangada?”
“O quê?” Evitou-a. Ele sabia…
“É que não falas comigo.”
Um silêncio naquela cozinha, apenas o murmúrio do frigorífico velho.
“Posso dormir na sala.”
“És o podes, Anselmo. Isso não é solução!” Puxou da mão para se agarrar à beira da mesa, mais para se controlar a si mesma. Retomou:
“Liguei à tua filha.”
“Ai foi?” hesitou.
“E ela concordou comigo. Diz que podes ficar com eles se marcarmos consulta.”
“Não vai acontecer outra vez” sacudiu a cabeça para afastar a noção de voltar àquele sonho. Abraçou a caneca morna e contemplou o fundo do café para não ter de concordar com aquele plano.
“Fico arreliada quando embirras assim.”
“Ela quer falar comigo?” perguntou à mulher e para desviar o assunto. “Que disse mais?”
“Que te ajudava se fossemos a Lisboa. Só.”
“Oh…” pigarreou. A ideia de a filha saber do que os afligia tinha tanto de assustador, como de embaraçoso. Saber que o esperava em Lisboa, também tinha o seu quê de excitante. Ao menos, a mãe já lhe tinha falado e eram meio caminho andado, mas nenhuma das mulheres sabia do lobo ou da menina. E que os pesadelos tinham começado quando a filha anunciou à mãe que ia ser avó…
*
A filha Carla sempre odiou a caça – e toda a conversa à volta do assunto. Quando o pai saía com os vizinhos para voltar com os troféus da matança. De início, ainda comiam e conseguia entender a lógica da coisa. Mas depois, era para proteger os animais e a horta e continuou a esticar a lógica para entender. Quando se tornou num entretém entre os homens da aldeia, a filha quis ir para descobrir por ela. O Anselmo estava radiante por ter a filha consigo, a única pequena da aldeia, mas quando o pai mandou abaixo o primeiro animal, a Carla chorou e esperneou até terem os olhares dos homens a mandá-la calar que estava a assustar a caça
A partir daí, fez o melhor e o pior que pode para que o pai não caçasse mais. Uma vez, escondeu-lhe a roupa; noutra, as chaves. Mas num dia, o Anselmo apanhou-a com a arma. Em pânico, arrancou-a das mãos e seguiu com um estalo tão grande que deixou a filha no chão. Não se falaram durante dias. E quando o hábito se instalou, os dias passaram a semanas e a meses. A vergonha misturava-se com o rancor. O pai continuava a caçar e quando a filha teve a oportunidade, saiu de casa para nunca mais voltar de Lisboa. Mãe e filha falavam diariamente, e não sentia necessidade de falar com o pai. Eram cordiais porque a Josefa assim lhes exigia, mas apenas em raras ocasiões, como quando nasceu a neta. Aquele pai continuava a amar a sua família e carregava uma culpa envelhecida, e só temia que esta não retribuísse aquele amor. Ele sabia que teria de a confrontar um dia – antes de morrer, de preferência. E agora que tinha de pedir à filha que odiava caça, ajuda com pesadelos sobre caça, sentia a ironia da coisa.
“Está bem” assentiu. Ia encontrar-se com a filha na capital e dar uma chance a esse novo doutor, mesmo repetindo que não era nenhum tolinho. E se isso não fizesse bem nenhum, ao menos fazia as pazes com a filha. Marido e mulher voltaram a encontrar-se sobre a mesa do pequeno-almoço entre pequenos e tímidos sorrisos de mãos velhas atadas. Sentiu o calor humano daquela mulher e sentiu-se aliviado por ela e pela familiaridade daquela cozinha, com pão e café do lume. Saiu da mesa e desapareceu para a casa de banho. A Josefa não perdeu tempo e foi logo ligar à filha com as novidades. O pai ia a Lisboa e havia uma consulta para marcar e outros preparativos tais.
III
Finalmente, o Anselmo ia à capital e estava ansioso – nervoso, e muita coisa ao mesmo tempo, por ir visitar a filha passados anos e anos. E também ia conhecer a neta! No café da praça, quando já estava mais tocado, não se calava com a excursão e ninguém o podia culpar pela felicidade. Os companheiros de caça sabiam que o amigo tinha um buraco de anos por encher e sabiam que esta viagem era uma importante. E como só teme quem devia, Anselmo estava aterradíssimo. O remédio para esse mal incluía horas no café e uns cheirinhos. Acalmavam-no, deixavam-no aconchegado e em paz na sua cabeça. Trazia consigo uma foto da neta que passava de mão em mão. Acenavam e elogiavam os clichés: a beleza da pequena e a esperteza do olhar. Vai ser engenheira. Vai ser médica. Vai ser professora, profetizavam. E ele era um velhote a comportar-se com uma criança, só visto. Boas sortes, palmadas nas costas e copos de tinto para baixo. A entornar para baixo, o Anselmo já não falava – tanto.
A Josefa também andava nervosa. Ainda assim, preparou-lhe a mala: um saco de desporto que um dos filhos tinha por casa. Começou com uma camada de roupa interior, dois pares de calças, camisolas térmicas e camisas. Enrolada numa das camisolas, ia um presente para a filha, a caixa de madeira trabalhada com boas intenções e mãos nervosas de amor e de algum arrependimento. As mãos do velho faziam mais do que caçar, também criavam coisas bonitas na reforma. Felizmente, terminou bem a tempo com o apoio moral da mulher e de um dos filhos.
Havia algo de mágico e triste naquele presente de pinho envernizado, com duas pequenas dobradiças de cobre e uma fechadura da mesma cor que cerrava os lábios daquela caixinha. Na tampa, quase centrado, lia-se o nome da neta. A Josefa ajudou com o interior, salvando farrapos e trapos azuis para forrar as paredes do interior. Era a cor favorita da filha, lembrou o marido. Assim, parecia que estavam a fitar os olhos de um oceano profundo. A verdadeira surpresa não era a caixa, mas o que protegia no interior: um pequeno e antigo fio dourado que a filha Carla usara no baptizado, que agora seria para a neta. Dois segredos num só. Mais ninguém no café sabia desta parte para além da Josefa. O pai podia não ter jeito para as palavras, mas compensava-o com acções. Havia a esperança de uma vela acesa de se reconciliar com a filha. Não podia deixar a luzinha morrer. Com tudo isto, a Josefa esqueceu-se de lhe arrumar mais um par de sapatos – também não havia espaço para mais…
Despediu-se do filho em casa, com um sermão para ajudar a mãe ou teria problemas quando chegasse. Depois, marido e mulher seguiram para a estação à boca da cidade e eram quase seis horas quando chegaram. O autocarro já lá estava a fazer tempo para arrancar à hora certa e os outros passageiros amontoavam-se num dos lados a arrumar a bagagem. O condutor recolhia os bilhetes à porta, rasgava parte, devolvia e desviava-se para ceder passagem. O Anselmo ajeitou a bagagem no porão e subiu com apenas dois sacos, o farnel para a viagem e a caixa que protegia com todos os cuidados.
Corria uma brisa a arrefecer aquele fim de tarde. Era provável que viesse de lá chuva. Antes de se despedir, a mulher ajeitou-lhe a camisa e puxou o casaco contra o pescoço, subindo a gola. Sabia que o marido era mais friorento enquanto ela andava bem só de bata. Olhou-o fixamente na cara afeitada e depois para os olhos escuros. Ambos viam caras de velhos, mas também das gentes jovens que haviam sido. Ele com o nervoso miúdo de uma criança e ela tal como ela sabia ser, com um cabelo amanteigado apanhado atrás, com o atrevimento de duas tiras à frente a emoldurar a face. Um nariz largo que passara à filha e lábios rosa inchados para falar muito, para ralhar muito, para chorar e rir. Beijou-os uma vez. Nos olhos castanhos da sua velha também viu orgulho. Ela aguentou tanto, nossa senhora… O marido sabia-o e agora vinha a vergonha. Enquanto se esteve a marimbar se dividia a família, ela passou anos a mantê-la junta…
Voltou a ser beijado pela mulher que não o queria largar. Também ela parecia uma garota.
Quando os passageiros começaram a subir e o motorista acabava o cigarro, a Josefa deu-lhe os últimos ralhetes:
“Vou ligar à tua filha e vou dizer como estás para ela te encontrar. Tu só tens de fazer uma coisa: assim que saíres da carreira, viras para o sentido das lojas. A Carla vai estar à porta e ajuda-te com os sacos. Não atravesses a estrada, não apanhes táxis nem fales com estranhos.”
“Já sei. Já sei. Não sou uma criança” e tentou sacudi-la de si, mas sem sucesso.
“Às vezes és. Fala comigo quando chegares” pediu. Ele resmungou, mas assentiu. Que mulher bonita que ainda era. E preocupada com um velho. “Tenta dormir e a viagem é rápida”.
“Depois vejo.”
Agora foi ele a beijá-la. Um beijo demorado nos lábios e outro na cara, com as mãos a prender os braços da esposa. Ele tinha mais para dizer, mas fez o que o velho Anselmo fazia de melhor: guardou para depois. Afastaram-se. A Josefa resistiu à tentação de lhe ajeitar o casaco outra vez e ficou a vê-lo a passar o bilhete ao motorista que o rasgou. Subiu e sentou-se quase a meio do corredor, à janela. Depois de um boa noite e boa viagem ao condutor, a Josefa afastou-se enquanto o motor da carreira começava a roncar e a virar para fora do parque. Levantou a mão e deu um meio aceno ao marido que não tinha a certeza se a vira. A carreira azulada, com o nome da empresa em letras garrafais nos lados, desaparecia de vista e ela seguia agora sozinha para casa.
IV
O Anselmo sentou-se na fila das portas, três bancos para trás, junto à casa de banho de viagem. Os outros passageiros ocuparam a escuridão e o sossego do fundo da carreira. À esquerda, imediatamente atrás da cabina do motorista, sentou-se uma mulher solitária. Até à última paragem na capital, ainda iriam parar várias vezes para a paisagem lá dentro mudar.
Escolheu a janela para fazer perdurar a visão da mulher. Já batia aquela saudade, mas dizia que não queria dar parte de fraco ou que raio isso fosse. A verdade nunca admitida, é que não podia estar muito tempo afastado da Josefa. Ainda conseguiu vê-la a acenar e respondeu toscamente antes de a perder de vista no final da tarde. Sozinho, estava mais nervoso do que uma criança no primeiro dia de escola e os receios eram praticamente semelhantes: será que vou fazer amigos? Será que os professores vão gostar de mim? Trocam-se os colegas pela filha e o terror era praticamente o mesmo. Era o velho que tinha algo a provar, não ela; era ele que tinha de fazer uma boa figura e conquistá-la. Felizmente, a idade e a distância trouxeram algum bom senso – ou assim julgava o velho Anselmo.
O familiar da aldeia ia ficando mais pequeno e cada vez mais distante. Tinha a sensação de que o autocarro estava parado e de que todos ali estavam congelados no tempo, se não fosse pelo marear da carreira e os sussurros de conversas ou do restolhar das merendas. As cores diluíam-se num céu que acompanhavam a viagem – os amarelos-torrados e os laranjas passavam a azuis-escuros, com leves tons de roxo nocturno. A Lua ganhava corpo para seguir a carreira com mais energia e por não ter mais nada que fazer naquela noite. Sem modernices com que se entreter, o Anselmo divagou durante esta metamorfose da natureza e entrou para a noite com a consciência de que não devia estar ali. Que já devia ter feito aquela viagem há anos e anos e anos… Continuou a adiar; só havia bilhetes para aquele dia; para aquela hora. De maneira que vais a dormir, assegurou a Josefa na sua voz séria de quem já tinha feito a viagem várias vezes.
Nem ia muita gente na viagem, a tal mulher de costas, uns estudantes ou outros que regressavam às aulas, um turista aventureiro (ou perdido). Podia sentar-se à janela e deitar as costas do banco à vontade. Tinha a cabeça encostada à janela e a vista pesava-lhe, a repetição do cenário também não ajudava em nada – campos de cultivo, campos abandonados, casas minúsculas de distantes e cartazes comidos pelo tempo com festas de terrinhas que já haviam terminado há meses ou anos. Talvez, nem essas terrinhas existiam mais na memória das pessoas que fugiam para as grandes cidades.
Resistia ao sono por uma razão parva. E porque não queria contar carneiros, decidiu-se a contar os troncos dos postes de electricidade, com compridos cabos negros, que ondulavam no lado de fora da grande janela manchada que lia QUEBRAR EM CASO DE EMERGÊNCIA. Quando chegou ao seu limite de números, os postes de madeira deram lugar a construções metálicas mais elaboradas e modernas e recomeçou a contagem até ser afogado pelo sono e adormecer para a vida encostado à janela, como uma cama de vidro frio que podia quebrar em pesadelos a qualquer instante.
V
A carreira seguia via rápida fora sem carros na direcção oposta. Viajavam solitários, já sem iluminação exterior e a única que havia era a ténue luz de presença no corredor. O motorista conduzia com uma atenção redobrada à noite e ao caminho, o colega acompanhava-o de braços cruzados e com comentários pachorrentos. Não havia televisão naquele percurso, mas uma rádio que sussurrava conversas interrompidas por anúncios e músicas da moda. Um anúncio em particular começou com o uivo de um lobo, seguido de outro e de outro sobre um produto qualquer que não devia interessar.
A dormir, o velho não os ouviu, mas sacudiu-se no lugar como se as criaturas tivessem passado pela sua campa. O Anselmo viu-se sozinho num lugar que não era a carreira para Lisboa, mas a mesma floresta dos seus sonhos que se tornavam pesadelos. Nas suas mãos, uma espingarda adormecida fitava um chão coberto de um manto de folhas, galhos e outras coisas que estalavam sob as botas do caçador.
Então viu-o: o mesmo lobo velho que farejava e afastava as folhas com o focinho na esperança de encontrar o que comer. Fraco, patético, triste como se sentia naquela viagem. E escondido nas sombras das árvores e pelo camuflado, o Anselmo voltou a erguer o cano para encontrar a criatura a fitá-lo com os olhos da rapariga. Desta vez, não tomou o disparo. Desceu a arma e aproximou-se, revelando-se à sua caça que falava em lábios mudos e que dizia coisas que não chegavam até si.
“Carla?” chamou o velho, mas a rapariga não reagiu ao seu nome e ele continuou a aproximar-se. Devagar para não a afugentar. Atrás de si, o chão estalou e o caçador saltou para dar de caras com outro lobo. Um que não era velho nem fraco nem fácil que se aproximava rente ao solo, com enormes olhos amarelos e fileiras serradas. O caçador mal teve tempo de erguer a arma quando outra criatura surgiu do flanco. Disparou em frente sem acertar em nenhum e recuou na direcção da rapariga. Apontou novamente a espingarda, mas nenhum dos lobos estavam à vista, embora os ouvisse a rosnar como uma faca gasta a serrar osso.
Algo correu e espalhou as folhas pelo ar. Anselmo disparou, mas foi puxado pela canela, para trás. Tropeçou e desceu a coronha para acertar no lobo. Uma e outra vez até a deixar imóvel aos seus pés. Apenas restava mais um que uivou. Outro uivo respondeu. E outro. E outro. E a rapariga estava novamente à sua frente, apenas a olhá-lo com olhos duros e aguçados que diziam mais do que palavras.
O segundo lobo ergueu-se das pancadas e voltou a fincar-se na canela. Distraído com a dor, o Anselmo tombou com o peso do primeiro lobo que o derrubou de costas. Sentiu algo a estalar e deixou de se conseguir mexer, mas mesmo que conseguisse, já os dois lobos estavam sobre o caçador tal como ele o fazia no seu pesadelo. Era bastante diferente quando ainda tinha uma espingarda, uma faca e a vantagem da surpresa. Caçar bichos velhos era bem diferente de caçar bichos novos, principalmente quando ele era um bicho velho. Voltou a ouvir a rapariga e voltou a chamá-la pelo nome da filha. Berrou e implorou, mas as suas palavras ferraram-se no pescoço com tamanha facilidade e torceram-no, afogando-lhe as desculpas.
VI
“Mas tem mesmo a certeza?” insistiu a mulher de quispo encarnado com os dois motoristas sentados.
“Por favor, ele estava sozinho e não conhecia nada daqui. A minha mãe disse que ele estava com um casaco castanho, duas malas e um saco. Cabelo branco? Curto.”
Um dos motoristas desfraldado escutava-a com a pouca atenção que conseguia reter nos olhos. O outro apenas acenava, com uma lata de refrigerante entre as mãos.
“Desculpe menina, mas já saíram todos há algum tempo. Não ficou aqui ninguém e nós estivemos aqui o tempo todo. Palavra de honra.”
Não sabia como argumentar mais. A filha foi dar com os dois homens mais para lá do que para cá quando lhes perguntou pelo pai, um senhor que supostamente tinha chegado naquela carreira e desaparecido na última paragem. Implorou para saber dele e até achou uma fotografia no telemóvel que a mãe havia enviado no aniversário dele. Estava a sorrir na imagem quando ninguém sorria naquela noite. A filha do Anselmo tinha chegado atrasada por causa do trânsito e do estacionamento para não o encontrar à sua espera. Agora dizem-lhe que não sabiam nele nem se lembravam de alguém com a sua descrição durante a viagem – convenhamos, vinham de costas para os passageiros e mal tinham interesse para olhar para as pessoas. O motorista que falava mais, desfez-se em falsas desculpas e explicou que a filha podia ir ao balcão de informações ou à polícia da Gare, talvez pudessem ajudar melhor. E que iam estar atentos se aparecesse alguém igual ao senhor da fotografia.
“Lamento imenso” repetiu. “Gostava de ajudá-la mais.”
*
A mulher roubara muitos dos traços da mãe nova, como o cabelo amanteigado, sendo a sua melhor conquista. Soprou de exasperação e de inícios de aflição. Esfregou a cara e coçou o cabelo para o fundo do pescoço. Afastou-se do banco e percorreu o passeio até à estrada. Subiu o capuz para se proteger da chuva miúda que havia regressado e abraçou-se para apertar o quispo encarnado contra o corpo. Seguiu sem qualquer orientação, em direcção às outras paragens e ia parando para falar com outros condutores, taxistas, passageiros, alguém prestável naquela noite. Ninguém sabia de nada, ninguém ouviu nada, ninguém viu nada. Às tantas ela falava e ninguém ligava.
Não via o pai há anos, mas aqueles minutos em que ele não aparecera tinham sido um golpe muito mais forte. Saiu noutra paragem e mentiu a toda a gente. Era isso o que ele era: um mentiroso de merda. Chegou ao fim da Gare, à chuva, e voltou-se para trás – tinha as paragens todas à sua frente, bastava abrir os braços e era tudo seu, todas as pessoas, todos os autocarros, tudo menos o pai. Chamou por ele pela primeira vez em anos, outra e mais uma para boa medida. Chamou por pai, chamou por Anselmo, chamou por cabrão onde raio te meteste. E ele nada. À distância, protegidos da chuva molha parvos, quem quisesse podia ver uma mulher perdida. Parecia estar a falar, mas não se ouvia nada. Era como se lhe tivessem roubado a voz.