Tema Livre

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“E para terminar a sessão de hoje, o tema do próximo conto será tema livre para ler na próxima semana.”
“Desculpe?”
“Tema livre” repetiu a professora. “Escrevam o que quiserem. O meu objectivo não é pegar-vos na mão para escrever. Quero que saibam pensar e tenham ideias, mesmo que tolas. Portanto: tema livre.”

*

Pelas mesas, ouvia-se o zunzum de vozes confusas ou entusiasmadas; indignadas e que se entreolhavam de ombros perdidos, mas também excitados. Acalmados os ânimos, os aspirantes a escritores abraçaram o novo desafio; apontaram o tema nos cadernos, blocos e moleskines, uns sublinharam e acrescentaram a data da leitura.
“Sobre o que quisermos?” confirmou uma vozinha no canto da sala; uma senhora de meia-idade que tinha colocado os óculos para ler o que tinha escrito no caderno.
“Exacto.”
“Mas isso é um pouco vago…”
“Mas é esse o propósito! A existência também é um pouco vaga, mas não é por isso que deixamos de a viver. Pense em qualquer coisa que irá lá chegar.”
“Qualquer coisa?” Desta feita, um senhor de fato e gravata. “Posso escrever sobre as aventuras fantásticas de um tipo que passa oito horas enfiado num escritório” e olhou para trás, à pesca das reacções.
Em frente ao quadro, a professora foi a única a sorrir.
“Dignas de um galardão! Porque não? Dá assim um toque e uma pitada de coiso e tal, e pode ter aí qualquer coisa. Se entusiasmar e conseguir cativar os colegas com histórias de gestores e segredos sumarentos trocados na copa, siga. Sucesso garantido!” terminou com um punho teatral para motivar, mas que mais parecia movido pela força do sarcasmo, mas a resposta satisfez o público… A mulher sentou-se à secretária, com a cacofonia das tampas a regressarem às canecas, dos materiais a esconderem-se nos estojos e enfiados nas mochilas e malas e sacolas. Por fim, a sala levantou-se para marchar para a saída, ainda em cavaqueira sobre o tema.
Para trás, um dos alunos ficou a empilhar uma resma de folhas em branco para as enfiar num dossier igualmente branco. A professora sentou-se à secretária e, da sua mala, tirou um pêssego; daqueles peludos que se prontificou a comer com uma fome curiosa, enquanto aquele aluno se demorava. A professora, que já era uma escritora publicada e sem muita paciência para aquilo, tinha um jeito peculiar para comer fruta – especialmente pêssegos peludos. Virava o fruto na palma da pão e abocanhava desse lado; voltava a rodar e trincava novamente. Cada dentada rompia e estreava a face do fruto até restar uma coisa amarela e ruída. Um amarelo forte e carnudo que ia roendo até ao caroço.

*

Havia outro atrasado na sala, que mirava o pêssego como um exercício mental para o ajudar a transpor para o papel tudo o que via e sentia. Fazia-o com tudo e todos. Ganhou aquele hábito com um pintor que andava nas ruas a pintar paisagens para os turistas. Sentou-se ao lado do velho, que naquele dia pintava uma lata esquecida num cantinho, e ficou a observar de caderno entreaberto.
Uma imagem vale mais do que mil palavras, sorriu o pintor quando reparou no mirone que o acompanhava a escrever. E o cliché ficou mesmo com ele. Se o pintor demorava uma hora a recriar aquela lata, ele iria demorar muito mais tempo; uma eternidade que valia mais do que mil palavras. Mas o velho era muito de clichés, quando não estava a chamar e a bajular os turistas gordos.
Não vejas. Observa. E o aprendiz de escritor obedeceu. Observou a lata, todos os lados e ângulos; cores; defeitos e feitios ao mais ínfimo detalhe de produção e de desgaste.
É uma lata, e então?
Então, que não deixaste nada à imaginação.
De facto, quando o pintor lhe mostrou a obra final, apenas viu uma lata. Mas havia algo mais, tanto que enterrou o dia a analisar aquele reflexo de uma lata; de uma que podia ir buscar à despensa, abrir e alimentar-se do seu interior. De uma lata que podia reciclar e fazer nascer outras mais latas ou atirá-la para a rua para ser pintada como uma modelo vagabunda. Isso: era apenas uma pintura desinteressante de uma lata que lhe consumia a imaginação e a criatividade. E quando leu as linhas que havia escrito, sentiu rigorosamente nada.
Dias depois de escrita e reescrita frustrante, o rapaz voltou a encontrar o velho pintor e passou-lhe o caderno de exercícios. Leu e devolveu ao rapaz com um sorriso seco para voltar à sua pintura de um pombo majestoso em cima de uma estátua miserável. Nunca mais se viram depois desse dia.

*

De volta à realidade daquela sala de aula, era ele o observador. Fazia-o de forma nada subtil, como se esperasse ser chamado pela mulher. Um pigarrear mudo e irritante para a chamar à atenção enquanto os colegas o esqueciam para trás. Ele não falava com ninguém e ficava feliz se retribuíssem o gesto. Não trocava ideias com os colegas nem partilhava a sua escrita com ninguém. Nas raras alturas em que tinha de ler o trabalho para a sala, fazia-o de estômago revoltado, como se sentisse nu e roubado de palavras. Infelizmente, faltavam-lhe créditos para acabar o curso e a Escrita Criativa pareceu-lhe a cadeira mais fácil para passar tempo. Só que estava errado e era das piores cadeiras que tinha. Achava-se um grande escritor em ascensão, com contos publicados e um site online sem visitas. Até tinha os tiques de um: as grandes ideias, mas também uma grande preguiça; falta de motivação e voz de impostor que se ria dele de forma burgessa. As aulas de escrita não ajudavam, eram uma constante competição na cabeça dele para ultrapassar os colegas que se estavam a divertir mais do que ele. E ele já se divertiu a escrever, portanto conhece bem a sensação de desbravar ideias com um deslumbramento quase infantil; uma inocência criativa que não ligava a ninguém – principalmente a si mesmo. Merda para todos, bufou enquanto a professora continuava a lanchar.
Ela lá o descobriu especado e chamou-o com um dedo, enquanto mastigava. Quando o último graxista abandonou a sala, a professora voltou-se com olhares cúmplices e pescou no fundo da mala por um pequeno saco transparente que empurrou pela mesa. Por mais que tentasse ignorar e passar por fixe, o estômago denunciara-o ao ver o produto. A professora acenou, como se autorizasse, e ele puxou-o para si e desembrulhou uma sandes com alface a espreitar. Trincou, e tinha ovo, mastigou. Os dois já se conheciam de outras cadeiras e ambos nutriam um aborrecimento geral para com aquela hora de escrita.
“Não comes em casa?” perguntou como um dentista sobre um paciente de boca cheia. “Quase que te ouvia a descrever-me o lanche daqui.”
Encolheu os ombros.
“Apanhaste o que tens de fazer? Já não sabia o que escolher mais e assim ainda me surpreendem com ideias para escrever.”
Levou o indicador aos lábios gretados.
“Pelo menos, sou honesta,” mas ele continuou a ruminar na sandes, a misturar a alface, o tomate e o ovo em voltas e voltas até engolir.
“Não tenho nada” comentou quando engoliu.
“Mas incomoda-te?” debruçou-se. “Que sugue a vossa inspiração.”
“Se chama ao que escrevem de inspiração, então vai continuar a dar aulas durante muito tempo.”
Ela sorriu-lhe.
“Nunca me inspirei aqui, lamento.”
“Achas-te melhor do que os outros?”
Acenou depois de voltar a trincar.
“Eh, não vou discutir. Gostei da tua última, mas sei que consegues melhor.”
Piscou-lhe o olho e começou a arrumar.
“Devia ter juízo e parar de parir romances como a outra senhora, mas o T3 não se paga sozinho, não é verdade? Só não queiras ser professor, é a morte do artista e tens de lidar com pessoas.”
“Ou uma fonte de ideias” lá conseguiu pronunciar algo por entre o bolo alimentar.
“Ou isso. Vá, andor!, que tenho de fechar a loja. Tema livre, não te esqueças, mas olha!” Chamou-me antes de sair, “sem qualquer pressão.” E sorriu-lhe.
Está bem. A ideia de surpreender alguém com a sua escrita tinha tanto de excitante como de aterrador. E com o quê? A originalidade era sobrevalorizada – a partir do momento em que inventaram a escrita e escreveram os primeiros gatafunhos, já o boca a boca tinha contado muitas histórias. Desde então, que os escritores passaram a ser centros de reciclagem, a revirar e a servir as mesmas histórias. Apenas vingavam porque a memória das massas era curta. Ainda assim, não despia a pressão de surpreender os pares; os leitores anónimos da net; a crush e a professora. Até mesmo a si…

*

Assim que deixou a sala de aula, deu por si no corredor frio e decorado de panfletos de tertúlias e de sombras do final de tarde, véspera de fim de semana. O aluno sentia-se num paradoxo, uma presença oxímora porque não devia estar ali. Calcou as solas na laje, como para ganhar corda, e correu escadaria abaixo e para fora do edifício principal, uma torre com sete andares. Era a cara da sua faculdade, em forma de livro com páginas encardidas e trancadas por já se terem atirado do último andar. Ou assim ditava o mito urbano. Esta torre em forma de livro abria-se a todas as personagens que a visitavam diariamente, com histórias que ganhavam vida entre as suas paredes – sem géneros definidos, lia-se de tudo.
Mas ele tinha mais do que fazer do que estar para ali a ler as pessoas. Correu até ao Metro para o perder, mas noventa e tantos minutos mais tarde, estava em sua casa no outro lado do rio. Veio a imaginar o seu tema livre – se haveria de escrever sobre algos que tinham acontecido ou sobre algos que gostava que acontecessem; sobre naves e mares de estrelas ou mares profundos e negros com terrores escondidos e que espreitavam com olhos berlindados; cristais de magias ou de estilhaços de páginas de alguém que decidiu expirar a sua vida.
Ligou o portátil que se arrastava e meteu os restos do almoço a aquecer, sempre com a liberdade do tema a segui-lo.
Plim!, chamou o micro-ondas para jantar!, mas e a fome? A única que tinha era de personagens e arcos e enredos e catadupa de ideias que mastigava às garfadas. E quanto tinha algo alinhavado, Plim!, surgia outra de mansinho com a promessa de ser ainda melhor! Se há quem sofra de coágulos criativos, ele esvaía-se em sangrias por todos os santos orifícios do seu corpo. E quando acabou de jantar, refugiou-se ao computador para escrever, já com as ratoeiras de histórias armadas.

*

O editor de texto em branco era-lhe glaciar, com apenas um sinal de vida intermitente – uma vez; duas vezes; três vezes
Aqui vamos nós… repetiu o mantra.
Mas três horas pela noite e a página continuava virgem. Outras três horas depois, e ainda diante do computador, estava distraído com memes e trívia inútil.
Se a porcaria do tema é livre, por que raio não me sai nada? Bufou. Mas é escrever sobre as férias de Verão… E com dois parágrafos a descrever o pânico de ir à praia sem óculos e não ver um palmo, ponderou o rumo do tema e aproveitou para ponderar o rumo da vida também. Apagou tudo para recomeçar a descrever o quanto odiava o calor por estar abafado no escritório. Nem a ventoinha USB ajudava a refrescar as ideias, mas de repente…
Estava a flutuar num mar de verdes e azuis, gelado ao toque, mas também muito quente e abafado. Os lábios e a língua sabiam-lhe a sal e a vista cansada focou-se na linha de praia que se afastava. Estava sentado num pedaço esquecido de madeira. De onde vira; para onde ia? Não sabia, mas sabia o que tinha de fazer: anotar tudo num maço de folhas amareladas e encarquilhadas com um lápis gasto e afiado à lâmina ou à força da vontade com os dentinhos. Ao registar a onomatopeia das aves bem lá no céu, sentiu algo bastante humano longe de qualquer humano: vontade de ir à casa de banho – vontade de cagar… Um problema que se resolvia sozinho naquela solidão marítima com toda a privacidade e nenhum julgamento. Deitou-se de lado para a borda da madeira, puxou os calções para baixo e respirou bem fundo para se concentrar e não cair. Fez força, crispou os dedos nas falhas da madeira e deixou-se ir, ignorando as dores das alfinetadas das farpas. Não fora o suficiente e caiu direto de rabo ao léu no mar frio!
Nesse momento, acordou de uma inspiração febril em frente ao portátil e correu à casa de banho real. Quando regressou, releu sóbrio e aliviado os dois parágrafos literalmente de merda. Génio!, e apagou tudo. Retrocedeu e guardou na pasta de ideias e rascunhos, não fosse reutilizar a prosa.
Cinco horas volvidas e mais nada escrito.
O computador ainda exibia a folha em branco, com o tracinho a pulsar gozão. A suar copiosamente, atirou o que restava da roupa para a cama e sentou-se nu ao computador. Agarrava a cabeça como se puxasse alguma coisa para fora, Porquê? Por que não sai nada? Podia ser um contito; um diálogo ou um monólogo. Uma cena pseudo que ninguém se ia dar ao trabalho de ler.
Pensa, pensa, pensa, puxou do seu Pooh interior.

O Homem está condenado a ser livre…

Quem disse isto?, divagou para descobrir que fora Sartre. Nisto, lembrou-se de uma publicação no seu blogue sobre o tema; sobre a liberdade; e procurou-a nos arquivos para a encontrar com comentários abandonados e gralhas.
Vai mesmo isto!, suspirou aliviado com o texto a reciclar. Uma lengalenga sobre a liberdade humana e Sartre, que culto que sou! Releu, corrigiu outras gralhas e gravou-o na Pen.

*

E se… escrevesse sobre escrita? Sobre a minha sanidade e descida aos infernos literários.
Naquele momento, odiava-se tanto. Já tinha um tema perfeito e terminado, mas a adrenalina era mais forte e movia-lhe as mãos sobre o teclado manchado de suor de dias de escrita. Queria afastar-se; sair dali para a cama e não pensar mais no assunto, mas as palavras seguiam-se umas às outras numa tentativa de fazerem sentido, mas tal como o novo tema, eram pura insanidade.
Liberdade, liberdade, liberdade. Loucura, loucura, loucura. Não é o mesmo? Escolhi ser louco?
Fitou o computador com olhos esfumados, olhos que se recusavam a piscar, secos, mas não de ideias. Oh, não, dessas tinha aos magotes, mas nenhuma era livre. Todas tinham histórias com início, meio e fim. Percursos delineados com personagens condicionadas por um deus invisível: Ele. Seria ele também uma personagem com uma história já escrita? E por quem? Deus? Péssimo escritor, zero desenvolvimento de personagem e que porcaria de conflicto. Que o final seja épico.
Afastou-se da secretária, ainda nu e colado. Deitou o portátil sobre a colcha esticada e abriu o YouTube para escolher a próxima banda sonora, mas não voltou ao editor. Em vez disso, varreu o quarto por uma única folha de papel que parecia extinta naquela casa com tantos aparelhos electrónicos. Encontrou uma e outra com as costas impressas de coisas, mas o suficiente para desenvolver a nova ideia. E um lápis! Agora, sim old school como o antigo pintor.

*

Uns dias depois e era tempo de entregar o que haviam escrito. A sala cheia conversava alegremente sobre as suas histórias; as grandes ideias que tinham tido; a musa inspiradora – bla, bla. Quando lhe perguntavam sobre a sua escrita, metia a melhor cara de póquer para dizer que tinha corrido tudo bem. Não desenvolvia com o receio de que o efeito surpresa se perdesse; de que o segredo fosse relevado e denunciado como impostor. Ninguém a tinha lido, mas assim que a lessem, ui… Deixou-a, tal como nasceu. Nem olhou mais para ela. Escreveu e dormiu uma rajada de horas para recuperar, a princesa.
A professora terminou a aula e pediu a um dos colegas para recolher os textos. Foi o último, como era sempre. Puxou de uma folha abraçada entre tantas e entregou-a ao rapaz, com uma piscadela falhada. Olhou curioso e retirou-se para a mesa da professora. Esta bateu com o molho para as endireitar e começou a ordenar os trabalhos enquanto a turma conversava. Parou numa folha. Olhou para ele; olhou de novo para a folha. De novo para o aluno; o olhar de surpresa dera lugar a um sorriso sedoso.
“Podem sair” despediu-se. “Hoje descansam. Até para a semana!”
Chamou-o. Esperou que todos saíssem para se aproximar.
“Tenho a dizer que por isto não esperava. Não é o que chamo de épico literário, mas tenho de confessar: uau” zombou.
“Diz-me uma coisa: porque ainda me vou demorar com este opus. Porquê?”
“Porque era livre” respondeu orgulhoso. “E se me dá licença…” Virou-se e abandonou a sala, assassinando um riso.
Encostou a porta e pelo vidro da sala ainda conseguiu topar o último aluno a demorar-se; a professora com o seu texto na mão, a girar na cadeira e a inclinar a folha para a luz. Conseguia vê-la do corredor escuro – completamente vazia de qualquer texto, apenas com um título.

Era uma vez…